Jovem morto pela Rota era deficiente visual e tomava café quando foi alvejado, diz família

Davi Gonçalves, que morreu com ele, não tinha antecedentes criminais e era trabalhador, afirma o ouvidor

Por: ATribuna.com.br  -  24/02/24  -  06:42
Hildebrando e Davi foram alvejados por policiais da Rota no dia 7 de fevereiro
Hildebrando e Davi foram alvejados por policiais da Rota no dia 7 de fevereiro   Foto: Arquivo pessoal

A Ouvidoria de polícias de São Paulo vem recebendo diversas denúncias a respeito das abordagens feitas durante a Operação Verão na Baixada Santista. Até o momento, 32 suspeitos morreram durante os confrontos. Essas ações vêm sendo questionadas pelas famílias de algumas vítimas, as quais relatam que os familiares mortos sequer tinham envolvimento com o crime. Nesta sexta-feira (23), a reportagem de A Tribuna conversou com o ouvidor Claudio Aparecido da Silvia, que contou detalhes de uma das denúncias feitas ao órgão.


Quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024 foi o dia que Hildebrando Simão Neto, de 24 anos, e Davi Gonçalves Junior, de 20, foram alvejados por policiais da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota). Segundo o boletim de ocorrência, eles teriam recebido uma denúncia de que um local estaria funcionando como ponto de tráfico de drogas e armazém de entorpecentes e armas.


A polícia afirmou que, ao chegarem no imóvel, os dois jovens teriam tentado matar os policiais da equipe apontando uma pistola. Durante o revide dos PMs, Davi morreu na hora, ao ser baleado com cerca de quatro disparos, e Hildebrando foi socorrido, após ser alvejado com mais três. O jovem morreu no dia seguinte.


No domingo, 11 de fevereiro, o ouvidor esteve na Baixada Santista para acompanhar a operação deflagrada. Na ocasião, ativistas o levaram até as famílias de Davi e Hildebrando, que relataram uma versão oposta à declarada pela Polícia sobre o que teria acontecido no dia da morte dos dois.


Deficiência visual e depressão
Claudio conta que foi informado que Hildebrando sofria de uma doença degenerativa progressiva, chamada Ceratocone. A condição do rapaz fez com que ele tivesse perdido 100% da visão do olho direito e permanecesse com apenas 10% no esquerdo. Por isso, os familiares alegam que o jovem não teria nenhuma capacidade física de participar de uma troca de tiros.


Na ocasião, a mãe de Hildebrando mostrou ao ouvidor alguns dos exames e relatórios médicos do filho, que comprovam a condição visual que ele portava. Em um dos exames de 2016, por exemplo, ficou comprovado que o rapaz só conseguia enxergar algo com nitidez a 30 centímetros de distância dos olhos. Desde então, a doença só se agravou. “Diante dessa documentação que tivemos acesso, isso pode vir a comprovar que Hildebrando não teria feito um enfrentamento a polícia”, comenta o ouvidor.


Documentos médicos comprovam que Hildebrando tinha doença visual degenerativa
Documentos médicos comprovam que Hildebrando tinha doença visual degenerativa   Foto: Arquivo pessoal

Por conta do problema, a mãe contou que Hildebrando estava com um quadro de depressão profunda. “Ela me mostrou algumas mensagens que trocou com o filho, em que ele reclamava da cegueira e da dependência que tinha com as pessoas por conta disso. Ele falava que era um estorvo”, relata Claudio.


Dia do ocorrido
Durante a conversa, Claudio diz que foi informado pela mãe de Hildebrando, que tinha acabado de chegar do trabalho por volta das 18h45, estava na sala com um dos filhos, a namorada dele e uma criança, e havia deixado a porta entreaberta por conta do calor. Uma das filhas estava sentada na calçada, do lado de fora da casa, enquanto Hildebrando estava no quarto dos fundos.


Ela relatou ao ouvidor que as viaturas chegaram e os policiais entraram na casa perguntando quantos quartos tinham no imóvel. “Ela teria dito que em um deles tinha uma criança de 8 anos, e no outro ao fundo, estava o filho que estava sofrendo de depressão severa, tinha deficiência visual, e que era para os policiais tomarem cuidado, pois ele poderia se assustar”, conta Claudio.


Segundo o relato, a equipe teria ido ao quarto, mas a mãe ficou na sala, escutou os tiros e começou a gritar. Nesse momento, a mulher conta que um dos policiais que estavam na sala, a puxou para fora da casa e bloqueou e entrada. Posteriormente, ela ouviu novos disparos.


“Ela contou que, quando os policiais entraram, Hildebrando estava tomando café da tarde, e por isso estava com uma caneca na mão. Quando foi alvejado, a caneca teria voado e os cacos ficaram espalhados pelo quarto”, comenta o ouvidor.


Davi
Quando foi abordado, Hildebrando estava com Davi, que seguindo relatos da família, era seu amigo de infância. A mãe contou que tinha uma relação boa com o jovem e ele tinha o nome dela tatuado no peito. Segundo ela, Davi começou a trabalhar desde cedo, atendendo carros e bicicletas em frente a uma padaria, e depois virou funcionário do local, onde trabalhava até hoje. “Segundo relatos, ele tinha uma relação muito boa com as pessoas e, inclusive, com policiais que frequentavam a padaria”, conta o ouvidor.


A família ainda contou que Davi e Hildebrando tinham o sonho de serem cantores e por isso costumavam se encontrar em casa para ensaiar, escrever e gravar algumas canções. Segundo Claudio, nenhum dos jovens tinha antecedentes criminais. “No boletim de ocorrência, a polícia diz que os dois estavam com armas, mas a família garantiu que eles não tinham condições de ter o armamento e, sequer, eram usuários de drogas”


Diante das informações, a Ouvidoria abriu um procedimento interno e vai acionar a Corregedoria da Polícia Militar com os relatos colhidos da família. O ouvidor ainda diz que vai solicitar as imagens das câmeras corporais dos policiais. Por fim, também foi oferecido o amparo técnico para os familiares, com o apoio da Defensoria Pública.


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