Santos tem história no futebol na várzea

Além da rivalidade entre vários bairros, os anos dourados proporcionaram momentos memoráveis

Por: Redação  -  26/01/22  -  20:40
Jair Siqueira, de 74 anos, que tem a sua história de vida entrelaçada com as estórias da modalidade em Santos
Jair Siqueira, de 74 anos, que tem a sua história de vida entrelaçada com as estórias da modalidade em Santos   Foto: Arquivo Pessoal

Houve um tempo em que centenas de homens, pés descalços, disputavam cada palmo dos campos de várzea de Santos como se estivessem jogando uma final de Copa do Mundo. Época em que frases como "esse gramado é um tapete" arrancariam gargalhadas dos talentosos ou voluntariosos jogadores, acostumados a atuar entre buracos e com o mato alto até a canela, em canchas sem demarcação de linhas. Tudo isso diante de multidões, que podiam chegar a milhares de torcedores, caso a peleja valesse um título ou se tratasse de um clássico varzeano.


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"Até então, os times só ficavam famosos ao ostentar longa invencibilidade, tipo mais de 50 jogos sem derrota, e todos os outros queriam quebrar suas invictas", recorda Jair Siqueira, de 74 anos, que tem a sua história de vida entrelaçada com as estórias da modalidade em Santos. Não apenas por ele próprio ter jogado como zagueiro do extinto São Paulo Futebol Clube na década de 1960. Mas também porque, através de anos de um minucioso trabalho de pesquisa, divulgando ou redescobrindo times, jogadores, campeonatos e causos, foi batizado de o "guardião da várzea santista".


Início
A ligação de Jair com o esporte, no entanto, começou mais cedo. "A lembrança mais antiga gravada na minha memória é do ano de 1955, quando, muito criança, vi o primeiro jogo da minha vida. Passava ao lado do campo do Ás Negro, na Avenida Afonso Pena, e vi que o goleiro era meu tio, apelidado de Padeiro", lembra.


Do encanto em assistir aos jogos desde pequeno a entrar em campo pelo São Paulo, Jair vivenciou o crescimento da várzea santista. E o surgimento dos grandes campeonatos nos anos de 1960. "Barreiros x Vasco foi o maior clássico dos anos 60 na várzea. Teve a decisão do campeonato de 1965, realizada no campo do Santos (Vila Belmiro), com um público de 9 mil pagantes. Mulheres e crianças abaixo de 12 anos não pagaram ingresso e o público foi maior de 10 mil pessoas. Foi o recorde em um jogo de várzea".


Walter Dias e Armando Gomes
Além da rivalidade entre as equipes de vários bairros da Cidade, os anos dourados da várzea proporcionaram momentos memoráveis para quem viveu o período. "Teve jogos irradiados de cima de um caminhão, em que Walter Dias e Armando Gomes, em início de carreira, foram alguns dos locutores. Muitos torcedores ficavam dentro do campo e quando a bola vinha nessa direção, todo mundo recuava e não atrapalhava as jogadas dos ponteiros”.


Em seus levantamentos, Jair Siqueira coletou dados impressionantes sobre o número de campos existentes nos áureos tempos da várzea. O primeiro data de 1955, quando Santos recebeu o título de "Município Mais Esportivo do Brasil" e teria, segundo informações da Prefeitura à época, 146 campos varzeanos, mais sete campos murados ou com alambrado. O próprio pesquisador reuniu uma lista com 120 campos, com a exata localização de cada um na Cidade.


O esplendor da várzea, porém, foi ofuscado por um rival poderoso. "No final dos anos 60, a expansão imobiliária e do cais santista acabou com mais de 30 campos quase que simultaneamente. Hoje eu só lembro de três campos de várzea em Santos. O do Juventude, no Morro da Nova Cintra, o do Bandeirantes, no Saboó, e o do Jardim São Manoel. Os outros que existem são particulares”.


  Foto: Reprodução

Craques se revelaram
Antes das canchas deixarem de existir, elas revelaram grandes talentos que viriam a brilhar no futebol profissional. Jair vai citando uma lista de craques, como Cláudio Christovam de Pinho, que defendeu o Sociedade Esportiva Santa Cecília, Flor do Norte e Guarani, e se tornaria, profissionalmente, o maior artilheiro da história do Corinthians, com 305 gols. Baltazar, que atuou na várzea nos anos de 1940, também faria nome no alvinegro paulistano e na Seleção Brasileira.


"Os antigos diziam que nos anos 50, o Baltazar vinha com um carrão, um Cadilac conversível que ganhou do Corinthians em renovação de contrato, e encostava no campo do Jabaquara para assistir aos jogos", conta o guardião da várzea.


Grandes nomes do Santos também surgiram nos campos de terra batida, como o goleiro Gylmar, bicampeão do mundo com a Seleção Brasileira (1958/62), que jogou pelo Vila Hayden, o volante Clodoaldo, tricampeão com a Seleção em 1970, e Negreiros. Corró e o atacante defenderam o Barreiros. Pavão, que saiu do time da Vila Henedina para brilhar e ser tricampeão carioca pelo Flamengo, e Marco Antônio, que atuou pelo Paulistano e foi tricampeão com Clodoaldo em 1970 com a Seleção, no México, também foram lembrados.


Resiste
A amor de Jair à várzea é tão grande que, em 2005, após um reencontro com velhos amigos de peladas, ele criou um site, o varzeasantista.com, para publicar fotos, textos e curiosidades sobre a modalidade. A repercussão foi tamanha que ele passou a receber dezenas de fotografias, que eram digitalizadas e postadas no portal.


O pesquisador passava horas a fio remontando as escalações, pois em muitas ocasiões era necessário descobrir quem era cada um dos atletas que perfilavam nos esquadrões varzeanos. Em 2015, a Várzea Santista ganhou uma página no Facebook, onde o número de seguidores cresce a cada dia.


Em seus estudos sobre o tema, Jair gosta de destacar que o futebol varzeano era dividido em dois tipos: o tradicional, jogado de pés descalços aos domingos pela manhã. "Era um juiz só apitando. Um time não gostava, tirava o juiz e botava outro. Os campos eram ruins, sem marcação nenhuma, mato alto", aponta. E a várzea promovida pela Liga de Futebol Amador. "Nos jogos da Liga só se jogava de chuteira, seguindo todas as regras, em campo marcado, nos domingos à tarde, com juiz e bandeirinha".


Mil times
Jair acredita que Santos já teve mais de 1.000 times de várzea desde os primórdios do esporte. Infelizmente, o árduo trabalho sofreu uma baixa em agosto do ano passado, quando ladrões invadiram a sua casa em Bertioga e, entre os itens roubados, levaram um computador que armazenava centenas de fotos e informações.


O baque não esmoreceu o trabalho do guardião. Aos poucos, em um autêntico trabalho de formiguinha, com a ajuda de velhos companheiros, Jair vai reconstruindo a história. Não só com dados e fotos, mas também na organização dos campeonatos da tradicional Copa União.


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