Era uma Vez... em Santos: palco da maior ação judicial de libertação de escravos do Brasil

Litígio entre herdeiros de Manoel Joaquim Ferreira Netto e advogado negro Luiz Gama, a Questão Netto movimentou o país

Por: Sérgio Williams  -  16/05/21  -  18:17
  Luiz Gama saiu vitorioso na Questão Netto, obtendo a liberdade de 217 escravos
Luiz Gama saiu vitorioso na Questão Netto, obtendo a liberdade de 217 escravos   Foto: Reprodução

Santos, julho de 1869. O advogado Luiz Gama, um negro autodidata que se tornaria, décadas mais tarde, um autêntico herói nacional por seu ativismo abolicionista, adentrava decidido no Fórum de Santos, situado nas dependências da Casa de Câmara e Cadeia (a popular Cadeia Velha, na Praça dos Andradas). Levava uma petição, que redigira de próprio punho e assinara, questionando o juiz da Comarca acerca de um processo de litígio sobre o inventário do comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto, falecido em 5 de abril de 1868. Gama exigia saber sobre o destino dos 217 escravos que o rico empresário possuía em suas fazendas, armazéns e casas comerciais em Santos, na Capital e no Interior Paulista.


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O movimento audacioso de Gama se dera a partir da leitura de uma nota publicada na imprensa, que dava conta do imbróglio criado entre a família de Ferreira Netto, o testamenteiro Luís Antônio da Silva Guimarães e um dos ex-sócios do comendador, Antônio de Freitas Guimarães, pelos bens do falecido empresário, avaliados em três mil contos de réis, cerc de 440 milhões de Reais. A disputa judicial ganhou corpo na mídia e ficou conhecida como a Questão Netto.


Gama soube da vontade do famoso comendador, lavrada em testamento, também pelos jornais da época. Ferreira Netto manifestara um desejo bastante comum entre os grandes proprietários de escravos da segunda metade do século 19: o de libertar, após a morte, todos que eram de sua propriedade. Era a “alforria post mortem”, visto por historiadores como uma espécie de “redenção moral e de consciência”, um arrependimento perante o juízo de Deus.


Entretanto, a vontade do falecido não fora cumprida e seus escravos continuavam cativos a serviço dos herdeiros e ex-sócios. Tal desfecho também não era incomum naqueles tempos. Segundo levantamento histórico feito em inventários nos arquivos do Tribunal de Justiça de São Paulo, de 1850 a 1875, 65% dos escravos continuavam cativos, contra 31% que obtinham a alforria.


Ao saber do impasse e da situação dos 217 escravos ainda não alforriados, Gama arregaçou as mangas e foi à luta. Em sua petição, foi hábil para não se colocar no meio da guerra entre os interessados pelo espólio de Ferreira Netto. Ele se apresentou apenas com um cidadão que exigia fazer valer o desejo da “alforria post mortem” pontuada no testamento.


Entre idas e vindas do processo, Gama acabou nomeado pelo juiz como curador dos interesses dos escravos e, a partir daí, construiu uma peça jurídica impecável, que não tratava da “libertação” dos cativos do falecido comendador, coisa que o advogado já tinha como certa devido ao testamento, mas atentava para o crime da “redução de uma pessoa livre à condição de escravizado”. Inverteu o jogo ao mostrar que a família do comendador cometia um crime por escravizar pessoas já declaradas livres.


Gama mandou fazer um levantamento sobre cada um dos 217 escravizados, cadastrando nomes, idades, naturalidades e histórias de vida. Ao final do trabalho, verificou haver gente de Angola, Moçambique, Congo e outras nações africanas.


Contra-ataque


Os herdeiros do comendador, acuados em relação ao movimento de Gama, decidiram impedir seu êxito contratando um renomado advogado para representá-los no tribunal: José Bonifácio, conhecido como O Moço e neto do Patriarca da Independência, seu xará José Bonifácio de Andrada e Silva. Ao contrário de Gama, que foi autodidata em Direito, O Moço fora um brilhante aluno da Faculdade do Largo São Francisco. Em tese, era um embate entre Davi e Golias.


A ideia dos herdeiros, contudo, mais do que um advogado famoso, era ter a seu favor um defensor que tivesse reconhecida relação com o movimento abolicionista, o que, em tese, ofuscaria a visão sobre decisões judiciais meramente escravocratas. Mas isso não funcionou, apesar de Bonifácio ter iniciado sua peça argumentativa em contestação ao trecho do testamento escrevendo no processo “Sem opor-me à liberdade, mas…”, seguido de argumentos que jogariam sua imagem de abolicionista no lixo.


Apesar da competência jurídica, Bonifácio perdeu para Gama na Comarca de Santos. O juiz deu ganho de causa ao advogado negro, mandando libertar os 217 escravos. Porém, o defensor dos herdeiros de Ferreira Netto apelou para outras instâncias no Interior de São Paulo, utilizando manobras protelatórias que só prolongariam o processo, adiando ainda mais a libertação das vítimas.


Desfecho tardio, mas vitorioso


Somente em 1872 é que Gama comemorou, embora parcialmente, a vitória. Foi quando o julgamento do mérito chegou à última instância, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no Rio. Naquela corte, Gama foi representado por um amigo, o advogado Saldanha Marinho, pois ela não aceitava a atuação do advogado negro fora de São Paulo. O abolicionista, no entanto, escreveu a sustentação final, apresentada por Marinho, e acompanhou o julgamento no Palácio da Justiça.


Os ministros do STJ concordaram com a tese de Gama, porém determinaram um prazo de 12 anos, contados a partir da elaboração do testamento (lavrado em 1866), para a libertação dos 217 escravos. Ou seja, os cativos tiveram que prestar serviços forçados para os herdeiros do comendador até 1878, quando finalmente ficaram livres.


A liberdade condicional foi tida como uma derrota para Gama, mas uma alforria coletiva daquela dimensão jamais tinha ocorrido no País e nenhuma outra a suplantou. Tal conquista, no entanto, não ganhou eco na grande imprensa, muito ligada aos fazendeiros escravocratas. Eles temiam que a repercussão pudesse gerar novos processos.


Balanço


Em 1878, fim do prazo estabelecido pelo STJ, um jornal paulista chegou a noticiar a grande festa que ocorrera em comemoração pela libertação dos cativos do comendador Ferreira Netto. Porém, dos 217 homens e mulheres libertados por Gama, somente 130 permaneciam vivos para gozar a liberdade conquistada.


Esta incrível história estava esquecida no tempo e foi resgatada graças ao hercúleo trabalho do historiador Bruno Rodrigues de Lima, que se debruçou sobre mais de mil páginas do processo original da Questão Netto, todo manuscrito. Trazido à luz em maio de 2021, ele não poderia escapar dos nossos olhares, ratificando Santos como um celeiro de fatos históricos.


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