Na pele de Billie Holiday, Andra Day floresce como atriz

Atriz brilha em cena, especialmente cantando as músicas de Billie com uma dedicação desconcertante

Por: Bia Viana & Da Redação &  -  18/04/21  -  10:45
Andra encarnou os dramas e a complexidade de Billie Holiday
Andra encarnou os dramas e a complexidade de Billie Holiday   Foto: Divulgação

A proposta de fazer um retrato visceral de Billie Holiday no auge de sua carreira com uma atriz estreante parecia um risco, mas foi uma aposta certeira em The United States vs. Billie Holiday, longa que compete no Oscar deste ano justamente na categoria de Melhor Atriz.


Clique e Assine A Tribuna por apenas R$ 1,90 e ganhe acesso completo ao Portal e dezenas de descontos em lojas, restaurantes e serviços!


Fora o despertar de Andra Day para a sétima arte, o filme, dirigido por Lee Daniels, também revela a potência do discurso feminino pela leitura da dramaturga Suzan-Lori Parks, a primeira mulher afro-americana a vencer um Pulitzer por Drama, que co-assina o roteiro e traz uma perspectiva feminina essencial para a narrativa.


Adaptar uma história tão cruel sem cair em um tom melodramático era quase impossível. Um dos maiores ícones mundiais do jazz e mártir da luta pelos direitos civis nos EUA, Billie Holiday sofreu incontáveis traumas em sua vida pessoal, que se refletem em sua música quase de forma involuntária.


Por isso, o retrato de Andra às vezes intercala um realismo impressionante e a romantização de certos acontecimentos, mas não deixa de humanizá-la e trazer uma narrativa mais sensível para ela. As sequelas da violência contra a mulher, que ficam impressas nos olhares e na linguagem corporal de Andra Day, são dolorosos de assistir. Porém, nem mesmo os excessos dramáticos impedem o longa de revelar a essência da artista e os propósitos de sua jornada artística.


Andra brilha em cena, especialmente cantando as músicas de Billie com uma dedicação desconcertante. A força da personagem que ela interpreta fala por si, mas a entrega no estudo sobre ela e na adaptação de trejeitos e reações torna sua abordagem de Holiday muito rica. Vale destacar a relação criada entre suas músicas e situações contraditórias, que também nos alerta sobre a complexidade da verdadeira Billie Holiday e todos os conflitos internos que enfrentava antes de subir aos palcos, os únicos espaços onde se sentia no controle.


Falha no roteiro


O roteiro deixa a desejar no desenvolvimento dos demais personagens, levando o espectador a questionar, por vezes, a sinceridade no relacionamento entre Billie e o agente Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes), que tem suas motivações ofuscadas em vários pontos da trama e cede ao clichê romântico. São muitos acontecimentos condensados, o que dificulta um pouco a leitura clara sobre a vida de Billie e como funcionavam suas relações.


A dependência de Holiday à heroína e ao álcool, retratada no filme com amargura e intensidade, resgata a intenção dos realizadores em comentar o racismo camuflado na guerra às drogas dos EUA. Na época, o governo transformou as drogas em uma “questão de cor”, abastecendo o ávido preconceito contra negros e imigrantes para garantir a criminalização, isentando os brancos (que até então podiam contar com doses de cocaína nas próprias garrafas de Coca-Cola) de qualquer relação com esse universo supostamente marginal e violento.


Direitos civis


Essa política de segregação fortaleceu a violência, o que levou à perseguição de Holiday, sob o pretexto das drogas, para camuflar o medo dos protestos e revoluções que estavam por vir no movimento pelos direitos civis (que tinha Billie Holiday e sua faixa Strange Fruitcomo líderes e hinos de resistência).


A polêmica canção, que fala sobre linchamento de pessoas negras, evoca a dor e o sofrimento da comunidade e permanece como uma das músicas mais influentes do século 20. Escrita pelo poeta e professor Abel Meeropol após ver uma foto de um homem enforcado em uma árvore, o poema se transformou em um marco na luta contra o ódio, que prevalece no legado da cantora responsável por sua interpretação.


Ressaltando o realismo das cenas de sexo, drogas e violência, em alguns momentos muito emotivos e dolorosos, o filme é uma oportunidade única de conhecer a história de Billie Holiday e entender seu papel no contexto social da época.


Vida


Eleanora Fagan Gough, conhecida por Billie Holiday(e também Lady Day), nasceu em 7 de abril de 1915, na Filadélfia. Negra e pobre, era filha de um músico que abandonou a família quando Billie era ainda bebê. Passou por privações e violências, incluindo violência sexual, quando tinha 10, perpetrada por um vizinho. Abandonada pela família, foi internada em uma casade correção para meninas vítimas de abuso. Após sofrer agressões físicas e psicológicas, fugiu de lá, aos 12 anos. Passou a morar nas ruas e viver de esmolas. Aos 14 anos, teve que se prostituir para sobreviver. Nessa época, já em Nova Iorque, tentou emprego como dançarina em uma boate. Penalizado, o pianista perguntou se ela sabia cantar. Billie disse que não, mas que era seu sonho. Ao cantar para a pequena plateia do local, foi aplaudida de pé. A fama underground cresceu, até chegarao crítico John Hammond. Ao ouvi-la, encantou-se. O resto é lenda. Billie Holiday morreu em 17 de julho de 1959.


Entrevista com Andra Day, atriz e cantora -Por Paoula Abou-Jaoude de Los Angeles, especial para a tribuna


Por Billie Holiday ser um ícone musical, você teve receio em aceitar interpretá-la em seu primeiro trabalho como atriz?Eu estava definitivamente apavorada e não queria fazer o filme, pois não me considero uma atriz, achei que seria péssima na interpretação do papel. Mas quando li o roteiro, que é muito bem escrito, e depois, ao me encontrar com Lee Daniels (diretor), vi o comprometimento dele com a autenticidade, a paixão dele por Billie, e sabia que ele contaria a história dela de maneira verdadeira. Como cantora, eu adoro a música dela, então isso foi um incentivo e também receio ao mesmo tempo. Uma vez que consegui superar o medo, comecei a gostar da ideia de me transformar em outra pessoa. Quando você faz música, você nem sempre tem a transformação total. Ao interpretar Billie Holiday, estou me transformando, e comecei a amar o processo, a ideia dessa mistura de nossos espíritos.


O que você mais esperava que a história do filme pudesse alcançar?
Mostrar o legado de Billie e fazer com que as pessoas pudessem vê-la não só como a madrinha do soul, mas também como a madrinha dos direitos civis. Foi o comprometimento dela de cantar Strange Fruit, mesmo sob ameaças de morte e prisão, e a morte de Emmett Till, o que realmente deu uma revigorada no movimento dos direitos civis. Para mim, como grande fã, foi emocionante poder contar a história dela, foi minha chance de agradecê-la.


Você canta todas as canções do filme, como foi sua preparação vocal?
Lee Daniels me apresentou a uma incrível professora de interpretação, Tasha Smith, e ao professor de dicção, Tom Jones. Eles me ajudaram muito. Nós ouvimos tudo o que podíamos obter: as gravações dela, entrevistas. Achamos nesse material pontos de referência para estudar, por exemplo, a respiração dela. Tentamos diferenciar o tipo de voz que ela fazia quando dava alguma entrevista ou quando conversava com a banda. Tentamos entender todos os timbres, as dores, os traumas...


E como você treinou sua voz para que ela assumisse o mesmo tom do de Billie?
A Billie fumava e bebia, era divertida e falava alto, provavelmente não cuidava muito da voz dela como eu cuido da minha. Então, eu fumei cigarros e bebi, coisas que nunca faço. Também comecei a falar mais alto e gritar (risos), e bebia coisas geladas o tempo todo. Passei a ser um pouco cruel com minhas cordas vocais no set de filmagens para controlar o tom. Também permiti que alguns traumas de minha própria vida estivessem presentes em minha mente e deixava aquele sentimento informar o emocional e o meu tom de voz. Não queríamos que o trabalho fosse uma imitação, e sim uma interpretação.


Quando você ouviu Billie Holiday pela primeira vez?
Tinha 11 anos quando ouvi uma música dela chamada Sugar, que ainda continua sendo uma de minhas favoritas. Mas ainda lembro de ter ficado confusa com a voz dela, porque não se igualava à de outras cantoras que eu conhecia na época, como Whitney Houston ou Aretha Franklin, então fiquei hipnotizada com sua voz e música. O fato de Billie se apoderar de uma voz própria me ajudou a fazer o mesmo com a minha. E ela cantando Strange Fruit me ajudou a dizer para mim mesma: ‘Ok, se eu vou cantar, mesmo que seja apenas para falar coisas de minha vida e experiências, o objetivo é inspirar as pessoas para que elas pudessem se curar’. Billie realmente inspirou, ajudou e formou muito do que eu faço hoje.


Logo A Tribuna
Newsletter