Mafalda Minnozzi celebra 25 anos de carreira no Brasil: 'Também foi um percurso pessoal'

Artista ítalo-brasileira comenta em entrevista exclusiva seu novo disco, perspectivas sobre a arte na pandemia e a relação musical entre Itália, Brasil e EUA

Por: Bia Viana  -  14/04/21  -  18:48
Mafalda Minnozzi celebra seus 25 anos de carreira com disco que reúne Brasil e Itália
Mafalda Minnozzi celebra seus 25 anos de carreira com disco que reúne Brasil e Itália   Foto: Bianca Tatamiya

Navegar é preciso, mas enquanto as fronteiras físicas permanecem fechadas, a melhor alternativa para matar a saudade de viajar é o disco A Napoli – Porto Dell’anima, um projeto que relaciona as culturas brasileira e napolitana em um repertório sensível e honesto em cada nota. A responsável por esta imersão na pluralidade artística de Brasil e Itália é Mafalda Minnozzi, cantora viajante que celebra seus 25 anos de carreira no Brasil.


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Nesse projeto, está acompanhada do pianista brasileiro André Mehmari, que refina a viagem com igualmente ampla bagagem cultural. Mehmari se destaca ao redor do mundo como multi-instrumentista,compositor sinfônico e de trilhas sonoras, e junto à Mafalda, compõe um trabalho meticuloso de releitura de oito melodias napolitanas com influências brasileiras.


A versatilidade musical demonstra o coração aberto de Mafalda, não só em sua trajetória profissional, mas também em sua vida
pessoal.Cativada pela simplicidade dos detalhes, a ‘cantante’ exerce sua voz para exaltar o amor, a sensibilidade e o carinho, feitos elegantemente neste e em outros álbuns de sua ampla discografia. Mafalda é ativa na produção musical, e enquanto lança seu novo projeto, já está gravando e planejando vários sucessores.


A artista também sela a união artística, cultural e social entre Brasil e Itália: trabalha como embaixadora da música italiana no Brasil desde 1996, realizando atividades filantrópicas, culturais e sociais.


A Napoli - Porto Dell’anima terá seu lançamento oficial em live para os canais Blue Note Rio e Blue Note SP, dia 23 de abril. Gravada no estúdio intimista de Mehmari, a apresentação de estreia promete surpresas e novos encantos, além de deixar os espectadores ansiosos para as futuras performances presenciais da dupla, pós pandemia.


Marcas no Brasil


Mafalda marcou presença em eventos importantes do país. Entre 1999 e 2003, foi convidada para colaborar como cantora e consultora histórica nas trilhas sonoras de Terra Nostra e Esperança, duas novelas dedicadas ao retrato da imigração italiana no Brasil. Em 2014, na Copa do Mundo, integrou o projeto Itália na Copa, organizado pela Embaixada da Itália no Brasil, apresentando programas ao vivo em Manaus, Recife, Natal, Rio de Janeiro e Brasília.


Em 2016, esteve em Santos pela primeira vez participando do 5º Santos Jazz Festival, na Pinacoteca Benedicto Calixto, interpretando junto ao amigo de longa data Paul Ricci o projeto eMPathia Jazz, que em breve será uma coletânea de quatro discos, com dois recém-gravados.


Entre o amplo conhecimento histórico da música e cultura italianas e sua vocação para encontrar a beleza nos cantos mais sutis, Mafalda compartilha, em entrevista exclusiva para A Tribuna, suas inspirações musicais, novos projetos e reflexões sobre a vida e a arte, buscando resgatar a doçura em tempos de tamanha aspereza. Confira:


Você diz que ‘cantar Nápoles significa celebrar o amor e se curvar à sua preciosa beleza’. Como foi esse processo de interpretar Nápoles na música?


A frase que coloquei contextualizou um percurso de grande respeito e amor à cultura italiana, principalmente dessa poética napolitana, de todos que fizeram da música napolitana o maior acervo histórico mundial. As primeiras composições do mundo, no século XIV, estão lá.


É um território que se dedica à arte, música e cultura. Nesse sentido, vejo uma ligação profunda entre Nápoles e o Brasil, especialmente com o Rio de Janeiro.


Como você vê essa ligação entre Nápoles e Rio?


Tem o mar, o conceito da liberdade, natureza e dos trabalhos ligados a essas áreas. A lua, o mar, o azul, são elementos que recorrem muito nas músicas de ambos, os amores passionais, as idas e vindas. A navegação é um conceito muito importante na música napolitana, e tenho certeza que a vida nos mares também inspira os músicos brasileiros.


Entre a música italiana e a brasileira, conhecendo bastante os dois lados, sempre achei conotações sobre amor, paixão, desde a alma do ser humano. É uma forte ligação entre Brasil e Itália. Tanto que vemos músicas do Erasmo Carlos e Toquinho que foram traduzidas e entraram na dialética da música italiana facilmente. Agora, o que diferencia muito é a parte rítmica. Aqui tem muito afro, e na Itália não. Aqui, a parte rítmica está no coração de qualquer produção musical, como no funk atual, mas também na Bossa Nova, na MPB, em todo o movimento tropicalista. A Itália tem uma elegância estética em tudo que faz, até num encarte de parmesão (risos).


Tem uma diferença de consumo, também.


Exatamente. Acho que tem uma coisa ancestral. O brasileiro em geral não gosta de ouvir música parado; ele sempre mexe uma parte do corpo, até ouvindo um show de música clássica na sala São Paulo. O italiano tem uma introspecção diferente. Parece que um teve uma evolução mais física e o outro mais introspectiva, cada um tem um consumo diferente.


Falando em diferentes consumos, o que não pode faltar na sua playlist?


Eu tenho uma variedade muito ampla, mas nunca extrapola alguns tipos de argumentos musicais. Posso ouvir um funk, mas escuto mais para entender como a garotada conversa atualmente. Gosto de ouvir musicalidades opostas para conhecer. Escuto porque sempre tem algo que me intriga, mas não estão na minha playlist.


Na minha playlist tem Diana Krall, 5 a Seco, Maria Gadu, Tulipa, Milton, Caetano, Maria Bethânia, Cazuza, Cássia Eller. Que inclusive me deu uma saudade doida hoje de manhã de ouvir! Preciso ser um pouco mais politizada neste momento e estou precisando ouvir a força de uma Cássia Eller.


O jazz também está muito presente em mim: amo, amo, amo Ella Fitzgerald, as grandes vozes italianas como Ornella Vanoni, Caterina Valente; é uma playlist sempre eclética, sou muito curiosa.


São 25 anos de estrada. Como é celebrar esta história?


Estou com produção de quatro álbuns agora, neste momento. Valorizo tudo que o Brasil, Nova York e a Itália me deram. Eu fiz uma história, é verdade, legitimo isso e tenho muito orgulho de tudo que fiz, pois também fiz um percurso pessoal, da mulher que resgatou sua própria existência com um pai machista, uma mãe muito limitada nesse aspecto cultural, então é tudo isso que espero celebrar.


Eu amo de verdade o Brasil. Eu disse ao André que estou lançando esse disco para comemorar. Tem Brasil e Itália, assim como sempre fui.


Legenda: Mafalda e André construíram um elo artístico entre a música brasileira e a napolitana.
Legenda: Mafalda e André construíram um elo artístico entre a música brasileira e a napolitana.   Foto: Divulgação

Como você e André Mehmari se conheceram?


Ah! Essa é uma ótima história. Eu era fanática pela Mônica [Salmaso]. Fui vê-la numa Virada Cultural, no meio da chuva; ela e esse pianista doido, incrível, eclético - o exato contraponto da Mônica, que é calma, introspectiva, que parece uma santa quando canta. Ele parece um dragão, que dá aquele chute com o rabo e joga fogo em tudo (risos). Então, fiquei louca. Eu fui lá pedir autógrafo e ele disse 'o que é isso Mafalda, vem cá, vou te dar um abraço'. Eu estava muda de tão emocionada de ver o show deles, tomada por aquele som, peguei meu autógrafo e fui embora.


Noutro dia, fui fazer um show em Batatais, na Festa di San Gennaro, onde tem uma atividade ítalo-brasileira incrível, e lá na frente do show tinha uma mulher de idade gritando, cantando e veio pegar autógrafo comigo. Era a Cacilda Mehmari, a mamãe dele, que mora na região. Ela é um talento danado! Toca acordeão, piano, tem um calendário de shows por lá.


Ela queria ver como uma italiana escrevia o sobrenome dela. Quando ela disse Mehmari, eu falei 'senhora, desculpa, você conhece por acaso...' e ela disparou 'é o meu filho!'.Foi a coisa mais incrível. Ela me disse: 'inclusive, se você me der seu telefone, vou ligar para ele', e eu disse 'te dou tudo, o número, endereço, CPF' (risos). Outro dia, ela me liga: 'André ainda está esperando sua carbonara, que você me prometeu dois anos atrás'. Eu pensei 'não acredito, eles estão me esperando todo esse tempo? Então eu vou lá'.


Fui no estúdio dele, que tinha acabado de ser construído no meio da floresta, no Parque da Cantareira, e parece uma igreja aberta para música. Fui lá e gravamos esse álbum em dois dias. Não dá para acreditar. E este mês, estou indo lá gravar outra coisa.


Como se contrapõem suas influências musicais de Itália, Brasil e EUA?


Aqui se vive o samba, na Itália o melodrama italiano e nos EUA, principalmente em Nova York, o jazz. Aqui o samba entra naturalmente e é quase fisiológico, desde o carnaval até a comida. Da Itália vem o encanto, a hipocrisia, a elegância, toda essa pompa. E quando você pensa em Nova Iorque, pensa no jazz, no movimento negro, na conquista de espaços. São mais de 100 anos de história e andanças. Jazz é liberdade: a improvisação, a arte, a possibilidade que você dá para várias comunidades entrarem em dialética, numa troca. Então, assim elas se relacionam.


Como tem sido seu enfrentamento à pandemia? Você teve covid?


Não tive. Nesse momento estou em São Paulo, e vou ficar aqui até o fim do disco, para ficar perto do povo que mais amo nessa vida.
Perdi muitos amigos. É um bicho de sete cabeças. Eu peguei o triângulo da doença, passando por Itália, NY e aqui.


Quando surgiu o vírus estava trabalhando em Nova Iorque, e toda minha família, inclusive meu esposo, está na Itália. Vivi essa dimensão surreal e ainda não dá para entender. Passarão anos até entendermos tudo que estamos vivendo hoje. É um espaço que todo o mundo vive entre a realidade, a projeção de nossos sonhos (de querer ser positivo, ter esperança), e de ver esse descaso e abandono tão grave dos políticos. Você volta a ficar triste em um segundo, se encontra chorando na sua casa sem saber o que fazer. Assustador.


A política realmente tem um papel crítico nessa situação.


O Brasil é moderno, descolado, a van guard de tantas coisas, mas é arcaico em tantas outras. Isso é uma coisa política, não é culpa do brasileiro. É efeito do colonialismo, de algumas figuras que já deveriam ter ido, que ainda atrasam um país que devia correr junto ao mundo.


O Brasil tem um potencial fantástico.
Na América, Biden em três meses fez uma revolução. Pode acontecer aqui, não é? As coisas não podem continuar acontecendo de forma passiva. As conquistas podem demorar um pouco, mas virão para chegar.


E como esse momento tem afetado seu trabalho?


Você tem que começar a fazer menos, pelos custos. É a primeira vez na minha vida que não imprimo um disco, eu que nem sei mais quantos discos tenho. Não tem possibilidade, dinheiro... É a morte definitiva de um produto que a gente consumia, que dava aquele desejo, ficava em cima das prateleiras. Esse era um disco perfeito para ser impresso no vinil, ainda tenho esse sonho.


Estamos indo para um mundo tão artificial, superficial, que não sei quanto preservaremos nossos sentimentos e emoções. Eu gosto de ir ao museu ver uma obra de Michelangelo, Renoir. Gosto de consumir uma obra de forma sensorial. E isso está se perdendo.


Após a pandemia, pretende vir a Santos? Qual sua relação com a cidade?


Não vejo a hora que me convidem de novo! Quando fui, fiquei encantada. É uma cidade estonteante! Tem a história, o mar... A última vez que visitei Santos foi em 2016, no festival de jazz da Pinacoteca. Estava lá com o Empathia Jazz Duo, que daqui a pouco terá quatro discos (acabamos de fazer os outros dois).


É um festival incrível, muito legal. Foi a primeira vez que cantei bossa nova em público, e todo mundo ficou em pé, gritando meu nome! Eu nem acreditei. Cantei pela primeira vez Chega de Saudade na frente de todo mundo.


Quanta humanidade tem nessa terra incrível, quantos abraços, sorrisos, quanta empatia. Acho que me dou bem porque sou uma pessoa simples, chego no abraço, beijo... Sou muito 'beijoca'. E sinto muita falta disso! Não gosto de dar a mão, já parto pro abraço.


Imagino que também deve estar animada para voltar à Itália. Tem muita saudade de lá?


Eu sou uma viajante, vou aonde o povo está. Estou andando já faz muitos anos. Sou uma imigrante com quase 30 anos de vida no exterior. Por isso, digo que a Itália está dentro de mim. Claro, me falta o abraço da minha mãe, do meu esposo, de alguns amigos queridos. Com vídeo e internet a gente fica pertinho, mas essa é a dor do imigrante, a dor da pessoa que divide a própria vida em vários países. Uma dor que está sempre lá, uma melancolia.


Com certeza espero voltar. Tenho um show marcado para 20 de junho na Itália, em um festival incrível. Mas temos que viver dia por dia, esperar a vacina e viver com respeito. Aproveito e destaco: Fique em casa se puder, use máscara, não seja negacionista!


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