Ivan Costa: 'O nerd ficou pop. A gente virou mainstream'

Confira a entrevista com o sócio-fundador da Chiaroscuro Studios, da CCXP Comic Con Experience e da GameXP

Por: Leopoldo Figueiredo  -  27/02/19  -  10:09
Ivan Costa
Ivan Costa

O mercado de quadrinhos no Brasil tem vivido uma nova fase. Mais profissionais estão surgindo, diferentes temáticas têm sido exploradas e isso, é claro, vem atraindo um novo público. As HQs, que há muito tempo deixaram de ser apenas histórias infantis, diversificaram seu conteúdo e até mesmo o formato, com a popularização das edições encadernadas.


A análise é de Ivan Costa, um dos nomes mais importantes desse mercado. Sócio-fundador da Chiaroscuro Studios (que agencia os principais talentos brasileiros no mercado internacional), da CCXP Comic Con Experience (a maior conferência de quadrinhos e cultura geek no mundo, realizada anualmente em dezembro, em São Paulo) e da GameXP (feira de games), esse profissional de Marketing e fã ardoroso da nona arte falou com exclusiva ao Canal 9 como o setor tem evoluído nos últimos anos e quais seus desafios.


Ele também tratou de seu mais recente projeto, a exposição Quadrinhos, que resgata a história das HQs no Brasil e pode ser conferida no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, até 31 de março. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.


Como surgiu o convite para fazer a curadoria da exposição Quadrinhos, no Museu da Imagem e Som (MIS)?


Em 2017, eu falei com o MIS a respeito de uma outra exposição que sugeri a eles, que era uma exposição sobre o Superman. Era algo bem específico. E eles disseram que gostariam de uma exposição que falasse das histórias em quadrinhos, de uma forma mais ampla, mas não tinham, porém, um recorte definido. Só queriam que não fosse sobre um único personagem. E aí minha proposta foi de justamente fazer uma exposição que contasse a história das histórias em quadrinhos, aproveitando o fato de que não houve nada do gênero no Brasil, pelo menos não na última década, e aproveitando a oportunidade de fazer isso em um museu importante, com visibilidade, que é o caso do MIS.


A exposição retrata a evolução das HQs no Brasil, incluindo a própria produção estrangeira que chegou a País. Por que essa abordagem?


A ideia do recorte foi que o público pudesse se reconhecer na exposição, foi falar da história  das histórias em quadrinhos do ponto de vista brasileiro. É por isso que tem uma área tão grande sobre a produção brasileira, fala sobre os criadores brasileiros. A gente tem uma sala só para o Ziraldo, uma sala só para o Maurício (de Souza). O espaço principal da exposição destaca o Laerte, o Angeli e o Glauco. Então ela tem esse olhar sobre a produção brasileira mais destacadamente, mas se propõe ainda a ver isso como um todo. Por exemplo, tem uma área para quadrinhos europeus, quadrinhos japoneses, para falar da produção norte-americana, que é importante para nós. E esse olhar também faz com que a gente deixe de lado produções que não são tão importantes para nós. Eu tenho certeza que tem quadrinhos de várias partes do mundo que não chegam aqui. Então para o brasileiro, isso não faz muito sentido. O propósito da exposição não era apresentar coisas novas, mas fazer um grande resgate daquilo que é e foi importante para os quadrinhos do Brasil ao longo do tempo. Hoje em dia, Ferdinando não é muito importante, mas durante muito tempo esse foi um personagem de capa da Gibi, por que era importante. Então o Ferdinando está presente na exposição. Assim como está presente o Garra Cinzenta. É uma oportunidade de reapresentar ao público personagens que foram muito importantes para uma determinada geração. O que a gente fez na exposição foi colocar todas essas exposições em pé de igualdade. Ali você consegue ver o que é importante lá atrás, o que é importante hoje.


Após essa curadoria, a que conclusão você chega sobre esse mercado cultural?


É um mercado e uma mídia que tem de ser encarada como tal e um dos objetivos da exposição é justamente esTe: mostrar que quadrinho não é só um gênero. Tem pessoas que acham ainda que quadrinhos é coisa para criança. Nessa exposição, você descobre que tem um monte de outros gêneros dos quadrinhos. Tem gente que acha que quadrinhos é só herói. E em uma exposição de 16 salas, só duas têm super-herói destacadamente, que é a da DC e a da Marvel. Acho que a exposição ajuda a colocar todo mundo na mesma página e mostrar que quadrinhos não é uma coisa só, não é um gênero só, não é só para criança, não é só super-herói, não é só Maurício de Souza. A exposição busca ampliar o repertório dessas pessoas todas e identificar os quadrinhos enquanto mídia.


Mudar paradigmas?


Sim. Mostrar que quadrinhos não é uma coisa só. Temos uma sala, que é um banheiro adaptado, que é para quadrinhos eróticos. E também mostramos que quadrinho erótico não é só quadrinhos de sacanagem. Há esse gênero, mas tem outros. É uma grande oportunidade de mostrar para um público muito amplo que quadrinhos é muito mais do que as pessoas imaginavam. Não à toa, a última sala da exposição é uma sala em branco. E aquela sala em branco faz, inclusive, uma provocação para que as pessoas contem suas próprias histórias. E que elas saiam dali estimuladas a procurar outros quadrinhos do que aqueles que ela está acostumada a ler ou que já leu. De repente, ali dentro, alguém descobre Heavy Metal, descobre Orquídea Negra, descobre Conan, descobre Piratas do Tietê. É uma oportunidade de ampliar repertório.


Qual sua análise sobre o mercado de quadrinhos no Brasil?


A gente vive um paradoxo. De um lado, a gente tem uma produção brasileira, autoral, que tem crescido muito em quantidade, em qualidade e em diversificação de temática. A gente tem quadrinhos brasileiros de fantasia, de ficção, de terror, biográficos, autobiográficos, LGBT, tem de tudo. Por outro lado, a gente tem uma crise editorial, causada em boa parte pela crise das livrarias, que eram um canal de distribuição importante. Então você tem isso: de um lado, uma produção que vem crescendo e, de outro, livrarias que não estão mais sendo um canal para distribuição. Por outro lado, a distribuição autoral raramente passa pelas livrarias. Isso aumenta a importância e a força de eventos como a CCXP.


E há uma mudança no ritmo das publicações, que deixam de ser mensais. Hoje temos cada vez mais as edições especiais, encadernadas, que são mais esporádicas.


É muito difícil você distribuir uma série mensal, que você tem de preparar todo mês, colocar em uma rede muito capilarizada. E o custo disso tudo é complexo. Há o custo de impressão, o custo de distribuição, que são mais altos. É tudo mais caro. E essas edições encadernadas, que trazem histórias inteiras, também vêm ao encontro da cultura atual de maratonar as coisas. Você não quer assistir um episódio de uma série hoje e assistir outro em uma semana. Você pega um final de semana e assiste tudo. Se você faz uma revista mensal “picada”, você tem de segurar a atenção do leitor durante um ano, seis meses. É mais complexo. E a pessoa ainda fala que a história não termina. Ou há o caso de que ela quer ler e só encontra o número 2. E aí pergunta: cadê o número 1? É um outro tempo. Temos, hoje, uma tendência de explorar mais as histórias completas, com começo, meio e fim. Elas acabam levando para as livrarias um público que quer a história inteira. É uma mudança do padrão de leitura que acaba levando a uma mudança do padrão de publicação.


E falando em mudanças, qual o impacto das compras on-line nesse mercado?


A oportunidade de você interagir com o objeto se perde nas compras on-line. Outra coisa que está surgindo, mas ainda esbarra nessa dificuldade que eu acabei de citar, são as plataformas 100% digitais, como o social comics, em que a pessoa não tem mais o objeto HQ, mas tem o conteúdo HQ. Tem mil facilidades, leva para qualquer lugar, não amassa, não some, não ocupa espaço, não junta poeira. Mas a gente perde aquela relação do papel na mão. Por outro lado, temos as HQs de capa dura, que viraram um objeto que soma ao conteúdo. Ok, uma HQ é incrível, mas essa está em uma edição de capa dura, linda, uma tiragem com papel especial. E a pessoa acaba comprando pelo objeto. Quantas edições saíram de Watchmen, de Reino do Amanhã, Crise, A Saga da Fênix Negra?


E nessa evolução do mercado de HQs no Brasil, qual o impacto da valorização da cultura geek, da presença do conteúdo de HQs em outras mídias, como cinema e TV? O quanto isso ajuda?


Eu acho que ajuda a evoluir por que desmistifica. Tudo hoje é mais palatável. Há 15, 20 anos, você encontrava uma camiseta do Batman na seção infantil da loja. Hoje, está na vitrine em tamanho adulto. Aquilo que a gente sempre chamou de pop no caso dos quadrinhos, virou pop de verdade, com uma ampla aceitação, inclusive por quem não conhece muito ou não conhece quase nada. Alguém compra uma camiseta do Justiceiro por que acha o design bonito ou por que ouviu o amigo falando. A minha mãe de 80 anos sabe quem é o Dr. Estranho.


É a evolução do nerd para o pop?


O nerd ficou pop. Eu gosto de dizer que é “A Vingança dos Nerds”. A gente virou mainstream. E isso ocorreu devido a várias coisas. Mas talvez o principal motor disso tudo são os filmes. Eles são uma mídia de massa, atingem muita gente. E se o filme não atinge muita gente, a campanha publicitária do filme atinge.


E tem algum aspecto negativo?


Talvez um aspecto negativo é que vem a reforçar na cabeça das pessoas que quadrinhos é igual a super-herói e super-herói é igual a quadrinhos. Aqui no Brasil, a gente tem uma presença, há mais de 50 anos, com muita força, de Turma da Mônica. Isso sugere um contraponto na cabeça das pessoas. Mas aí fica assim: quadrinhos é super-herói e Mônica. Mas a gente vai tendo cada vez mais outros conteúdos aparecendo. E a própria mídia vai dando espaço para outros temas também. Recentemente, no programa Encontro com Fátima Bernardes, estava um quadrinista falando sobre o quadrinho dele com uma aventura de orixás.


E qual sua visão sobre os quadrinistas brasileiros?


Na produção de quadrinhos no Brasil, cada vez mais a gente vê novos nomes surgirem. Esse é um outro indicador importante de que é um mercado que está crescendo. Outras pessoas estão se interessando em entrar nesse mercado. Isso está trazendo outras vozes, outros estilos, outras temáticas, outras abordagens e, por extensão, outros públicos. Quando você só tem quadrinhos de super-herói e infantil, exagerando, você só tem leitor de quadrinho infantil e de super-herói. Na hora que tem outros conteúdos, você atrai mais gente.


E os profissionais da nona arte, hoje, conseguem viver dessa atividade?


De uma forma geral, ainda não. Há muita gente com outras profissões e que também atuam no mercado. Uma coisa que ajudaria é se a gente tivesse mais eventos no País. As pessoas vendem muito, às vezes tiragens inteiras na CCXP. Agora é um evento só, que acontece apenas em dezembro. Se a gente tivesse eventos acontecendo em fevereiro, abril, junho, agosto, seria uma plataforma maior. E também eventos em outros estados. Não adianta ficar tudo em um estado só. Se tivesse um grande evento, mas grande mesmo, em Porto Alegre todo mês de fevereiro, um grande evento no mês de junho no Rio, as pessoas teriam como garantir uma renda mais continuamente, vendendo muito em fevereiro, em abril. Aí quem sabe as pessoas poderiam se manter apenas com quadrinhos. O grande lance é multiplicar essas oportunidades de venda com múltiplos eventos. Eu tenho certeza de que nem todo mundo de Porto Alegre que gosta de quadrinhos consegue vir para a CCXP. Tem um contingente de pessoas interessadas nesse material que não consegue vir e, assim, não consegue comprar.


E a CCXP não tem interesse em atender essa demanda, realizando edições em outros meses e em outros estados?


Não, a gente não tem uma previsão de ter mais uma CCXP no Brasil. O que a gente tem hoje é a CCXP em São Paulo, em dezembro, e a Games XP, que é um evento de games e que inclui uma área, ainda que reduzida, para quadrinhos e acontece em julho.


O mercado brasileiro suporta mais um evento deste porte?


Acho que, localmente, sim. O mercado está crescendo. A CCXP já cresceu grande. A gente tem eventos país a fora que estão surgindo ou que já existiam e estão ganhando musculatura.  Tem evento em Santos, tem evento no Rio, no Nordeste e por aí vai. O que eu desejo mesmo é que esses eventos cresçam e ganhem importância para virarem plataformas de venda e divulgação para mais profissionais. E isso só fortalece o setor. Os artistas terem um único evento para apresentar sua produção, em um país deste tamanho, é muito pouco.


E há novidades para a edição da CCXP deste ano?


Ainda não temos nada para divulgar. Costumamos iniciar os anúncios só em abril. Até por que, antes disso, a gente vai ter uma CCXP na Alemanha. Nós vamos fazer em edição em Colônia. Será a primeira edição e nossa primeira experiência internacional.


E como surgiu esse evento? Vocês estão exportando a marca? O que será essa CCXP Alemanha?


Toda a tecnologia e know-how da CCXP está sendo levado para lá. A gente tem equipes inteiras trabalhando nesse projeto. A operação é de uma equipe alemã, que conhece os locais, mas será uma CCXP, com as mesmas características do que a gente produz no Brasil.


E quais as expectativas para este evento?


Estamos animados de fazer um evento em uma cidade conhecida por fazer grandes eventos. Colônia tem pavilhões ainda maiores do que os do Brasil e eles ficaram encantados com o projeto CCXP. Partiu deles, inclusive, o convite de irmos para lá.


E quem são eles? Quem fez esse convite?


Esse parceiro (a Koelnmesse GmbH), especificamente, já tinha um evento de board games (jogos de tabuleiro), mas ele não tinha uma comic con. E estamos levando para lá a CCXP no formato que temos aqui e vamos incluir a parte de board games. Estamos fazendo essa primeira edição (de 27 a 30 de junho deste ano), temos uma boa expectativa e no final, no futuro, podemos vislumbrar no futuro outras edições em outras localidades.


O que espera do futuro do mercado de quadrinhos no Brasil?


Quero ver uma produção com uma qualidade cada vez maior, que ocupe espaço não apenas no mercado brasileiro, mas também no mercado exterior, para que a gente possa exportar conteúdo, ter mais quadrinhos brasileiros lidos em outros países, principalmente na Europa, que é mais permeável ao tipo de produção que a gente tem aqui. Ver artistas, quadrinistas vivendo exclusivamente de quadrinhos. E ver mais pessoas lendo quadrinhos. A iniciativa do MIS é mais um tijolinho nessa estrada para que as pessoas se familiarizem mais com as HQs, leiam mais HQs. A qualidade aumenta com o aumento da produção, o número de títulos lançados. Em nenhum mercado, você sai do zero e chega em uma obra-prima tão rápido. Não estamos no zero, mas temos um caminho a ser percorrido. E a gente está percorrendo esse caminho. As pessoas estão produzindo cada vez mais. Estão vendendo essa produção. Isso está chamando a atenção, inclusive com maior visibilidade lá fora. A produção aumenta e o mercado vai se sofisticando.


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