Falando Séries: Dark e as múltiplas faces do presente

Nas últimas semanas, a internet foi transbordada por comentários e opiniões, a respeito da terceira e última temporada da série alemã, no Netflix

Por: Matheus Tagé  -  25/07/20  -  15:29
A série foge de uma conclusão convencional, embora nos provoque a torcer para isso
A série foge de uma conclusão convencional, embora nos provoque a torcer para isso   Foto: Reprodução/Netflix

Nas últimas semanas, a internet foi transbordada por comentários e opiniões, a respeito do lançamento da terceira e última temporada da série alemã Dark, no Netflix. E entre as afirmações, está o fato de que talvez seja essa a melhor série da história, a obra-prima do serviço de streaming. Com 94% de aprovação da crítica no site Rotten Tomatoes, a argumentação naturalmente faz jus à qualidade da produção. Logicamente, algumas opiniões divergem, mas não é possível se deixar de observar a relevância de Dark e sua interessante construção narrativa.


Para que o leitor tire sua própria conclusão, é interessante contextualizarmos uma análise a partir de elementos fundamentais, e assim fazermos uma breve desconstrução da história. Vamos ao contexto. A narrativa acontece em uma cidade alemã, chamada Winden. A cidade é uma espécie de versão alemã para cidades inóspitas, bem ao estilo de Stephen King, esse tipo de lugar isolado em que tudo pode acontecer, e determinadas regras ou convenções sociais, supostamente não se aplicam. O local é cercado por florestas, rodovias desertas, e uma usina nuclear - empreendimento que aparentemente sustenta economicamente a região. A própria textura da imagem, a fotografia da série, é extremamente fria, cinzenta, por vezes com grandes planos gerais que esmagam os personagens nas cenas, e enquadram um lugar esquecido no tempo - aliás, este é um elemento que falaremos mais a frente. Aparentemente, as casas seguem esta mesma estética, há uma espécie de vazio que permeia todos os espaços, algo que nos provoca certa angústia. E essa percepção inquietante é muito bem trabalhada na condução da série.


A definição de não-lugar, na concepção do antropólogo francês Marc Augé, se refere a um espaço que não tem função, um local esvaziado de sentido, um espaço que não é fim. E nos parece que Winden é justamente este tipo de local, a cidade não é um destino, visto que o hotel de uma das personagens, está sempre vazio, e não há referências a outros lugares. Embora para o resto do mundo, se trate de um lugar isolado, é especificamente neste contexto descolado dos grandes centros urbanos, que os personagens desenvolvem suas tramas. Eles estão presos à cidade. 


Por falar em personagens, este é um ponto crucial da história. Os nomes são difíceis de decorar, são muitos personagens, em diferentes épocas, e muitas ligações entre eles. O fato é que esta dinâmica vai ficando cada vez mais complexa, o que obriga certo engajamento do público na série, para poder entender quem é quem. A própria Netflix e alguns outros sites disponibilizam árvores genealógicas que ajudam a entender a intrincada relação entre os personagens. A questão é que apesar de toda a pseudociência que a série suscita, a problemática gira em torno das pessoas. Talvez, o ponto mais triste da série, seja a constatação de que o menino Mikkel, que se perde no início da história, vá parar no passado, e simplesmente nunca mais voltará. Esta questão cruel, criada de forma comovente pela série, nos provoca certa agonia, um sentimento que vai nos atormentar ao longo de todas as temporadas. 


A série cria duas dimensões de dinâmica interpessoal. Existem as funções dos personagens no contexto da cidade, seus papéis sociais; e ao mesmo tempo, há sempre algum tipo de segredo, uma problemática interna em cada um deles. E esses conflitos internos vão dando uma interessante condução na história. A questão de termos personagens convivendo com seu ‘eu’ mais velho e mais novo ao mesmo tempo, é uma questão bem trabalhada na série.


Por fim, a trama. Ao longo das três temporadas, Dark cria um simbólico cruzamento de citações bíblicas, frases de Freud, Shakespeare, Nietzsche, Einstein, e também boas pérolas dos próprios personagens, que servem como argumento filosófico para os episódios, o que tenta gerar uma sensação de profundidade na série. Mas o fato, é que como toda boa obra da cultura pop, esses flertes filosóficos são superficiais e muito literais na narrativa - muito mesmo. As frases são praticamente desenhadas ao longo dos episódios que vão interpretando seus sentidos. Porém, devemos considerar que sempre há um ar niilista - uma atmosfera bastante pessimista - e de suspense nas possíveis interpretações. O que consolida toda a estética da série, e que funciona muito bem.


Penso que o elemento central da narrativa seja o tempo. Para entendermos o principal fator de Dark, temos que analisar o conceito de temporalidade, tendo como perspectiva, a acepção filosófica alemã. E aqui vale um sobrevôo na teoria. Para isso, sugiro a abordagem de Martin Heidegger acerca do tempo. O filósofo alemão identifica ao longo de toda sua obra, um esvaziamento do conceito tradicional de tempo que por convenção, se subdivide em três fases fundamentais: passado, presente e futuro. Para Heidegger, só existe um tempo: o presente. E aqui entra o seu conceito de Dasein, na tradução do alemão, ‘ser no tempo’. Ou seja, o passado já foi presente; e o futuro é o presente que virá. Em Dark, observamos a supressão do espaço-tempo justamente na ascensão de uma espécie de presente constante. Então, todas as viagens no tempo se dão em espaços que se tornam o presente para o personagem. 


Na tentativa de alterar algo do passado para corrigir o presente, os personagens acabam sempre provocando o problema que tentam evitar. Esta problemática do tempo é trabalhada também, a partir do conceito do paradoxo de Bootstrap - quando um objeto do futuro é levado ao passado, criando assim uma contradição quanto a sua verdadeira origem, como o livro do personagem H.G. Tanhaus. Esta abordagem do tempo é bem diferente de outras obras de ficção, como o clássico De volta para o Futuro (1985), por exemplo, em que McFly consegue alterar o presente ao modificar o passado. Em Dark, isso é impossível, pois nada está fora da engrenagem, tudo está previsto, e este é o dramático diferencial da série.


Na terceira temporada, a partir do quinto episódio, a narrativa fica bem mais didática, e alguns pontos que provocavam complexidade nas temporadas anteriores, acabam sendo simplificados - como a relação dos dois mundos de Adam e Eva, e o mundo de origem - enquanto outros pontos são esquecidos - como as experiências com crianças, e a suposta origem de alguns personagens secundários. Mas a esta altura, não é necessário mais decorar nomes, ou entender a metafísica das viagens no tempo, isso não importa mais, pois a narrativa caminha sozinha através da dinâmica dos personagens. 


A série foge também de uma conclusão convencional, embora nos provoque a torcer para isso na terceira temporada. Assim, ela se diferencia de narrativas como a série Stranger Things, também da Netflix, por exemplo, em que sabemos que apesar de tudo, ao final, vai ficar tudo bem. Dark não segue esta convenção narrativa, e sua conclusão, ainda que não seja da maneira clássica, é bem interessante. De fato, é uma série para maratonar, não há meio termo. Ou o espectador se prende definitivamente, ou perde interesse logo no primeiro episódio. Vistos todos os pontos, tenho que considerar que, talvez, Dark seja mesmo a melhor série de todos os tempos. Mas deixo para o leitor essa conclusão.


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