Escritora de Santos lança obra mesclando artes plásticas e a vivência na Baixada Santista

Katia Marchese se inspirou na obra de Edward Hopper para retratar o imaginário feminino, além de relembrar sua infância

Por: Bia Viana  -  13/04/21  -  12:39
Katia Marchese nasceu em Santos e se inspirou na cidade para sua obra de poesia
Katia Marchese nasceu em Santos e se inspirou na cidade para sua obra de poesia   Foto: Divulgação

Edward Hopper, pintor norte-americano, costumava criar retratos de mulheres solitárias e silenciosas entre as décadas de 1930 e 1960. Admiradora de sua obra, a santista Katia Marchese propôs uma desconstrução desse imaginário feminino sustentado por Hopper no livro Mulheres de Hopper, uma obra com 26 poemas ilustrados que busca compreender o íntimo feminino e trazer novas perspectivas sobre o cotidiano da mulher na vida moderna, em todos os espaços.


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Katia seleciona quadros de Hopper desde 2005. Em 2018, veio a ideia de transformar a pesquisa em livro, que se materializou em 2019, após uma seleção de poetas do Curso Livre de Preparação de Escritores (Clipe), em São Paulo. Foi onde conheceu Isabela Sancho, que ilustra o projeto com imagens.


"O livro foi concebido a partir de um processo de estudo dessas obras do pintor. Foram selecionados 26 quadros que funcionam como janelas e portas no qual debrucei meu olhar". A segunda grande inspiração para a obra veio de uma ação social, onde Katia realizou 10 oficinas de leitura com mulheres em situação de vulnerabilidade social em Campinas, onde reside atualmente; "essas são as mulheres de Hopper reais".


Atuando como assistente social há anos, Katia reconhece os sentimentos que permeiam o cotidiano feminino. A poeta faz um recorte das telas do pintor, dividindo-as em quatro temáticas: Trajetos, Janelas, Quartos e Casas. "Acredito na função social da arte, e como assistente social, sempre trabalhei com a perspectiva da consciência e luta dos cidadãos, principalmente das mulheres, ao seu direito de acesso e produção na cultura em geral. Esse livro foi composto com todas as minhas experiências pessoais e profissionais vividas no universo do feminino, onde as mulheres são o sujeito de suas próprias histórias".


Esse cotidiano retratado na obra reflete as mulheres dentro de seus espaços íntimos, resistindo e enfrentando um contexto histórico de opressão. "Elas resistem e enfrentam a cultura machista, misógina, disfarçada de 'mito do amor romântico' que está impregnado em nossos corpos, falas e mentes. Situo a obra nesse contexto histórico, buscando o diálogo com as mulheres através da poesia, para então construir novas sociabilidades e fortalecer a sororidade entre as mulheres".


O lançamento durante a pandemia gera uma mistura de emoções, que segundo Katia, a colocam dentro dos quadros de Hopper, já que vive um confinamento. "A ficção da obra sendo vivida na realidade. É muito difícil não poder estar ao lado das pessoas com quem tenho relações poéticas, não poder dividir a alegria da criação e nem poder saber de seus efeitos".


"Tinha previsto lançamentos em Campinas, Santos e São Paulo, mas infelizmente tudo será à distância do outro e das paisagens. O mais difícil é lançar o livro em meio a tantas mortes desnecessárias, de ver meu país no caos do negacionismo. Por isso, espero que a poesia de Mulheres de Hopper seja um grito de força e resistência aos horrores que estamos vivendo".


Mulheres de Hopper é resultado da premiação de Katia no Programa de Ação Cultural 2019 (Proac) do governo do Estado de São Paulo. A obra foi lançada neste mês e já está disponível em pré-venda no site da editora, www.editorapatua.com.br.


O esgotamento de uma Ilha


Com 22 anos de histórias na cidade, Katia nasceu no bairro do José Menino, no corajoso edifício Joana D'arc, onde passou toda sua infância. "Tenho marcado dentro de mim os balanços da praia, o fim de tarde e os tatuís, os girinos do canal, os gritos do peixeiro, o orquidário misterioso de seres, o vento noroeste, a linha do trem, enfim, o cheiro profundo da maresia. Acredito que a principal fonte que alimenta um poeta é a memória (musa) da infância, as leituras dos livros e a vida real".


Aos 12 anos, acompanhando os versos pintados com letras garrafais no Cine Indaiá, descobriu seu amor pela poesia. Nas idas à livraria Martins Fontes, conheceu todos os grandes: Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Lorde Byron, Violeta Parra e tantos outros. "As amigas de turma também me ensinaram poesia através da nossa obsessão por MPB. Eram mestras nas canções de Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano e Gil, Betania e Gal".


Pouco depois, o amor à poesia se encontrou com a fé: desde os grupos da Pastoral da Juventude quando adolescente até o casamento na capela Nossa Senhora dos Navegantes, pouco antes de se mudar para Campinas, Katia entende o espiritual como atributo da cidade. "A possibilidade de outros mundo me fascinava. Acho que todo santista é uma mistura de católico com espírita, sempre gostei do sincretismo da minha cidade".


Após estimular o artístico e espiritual, durante o período universitário, alimentou a consciência política. "A poesia da militância contra o fim do governo militar, as arrecadações de alimento para os grevistas do ABC, as noites imprimindo cartazes com silkscreen para resgatar o prédio histórico do Centro dos Estudantes de Santos. Enfim, minha ilha me fez e eu a fiz, e a carrego até hoje dentro de mim".


Três dos poemas em Mulheres de Hopper se baseiam em sua terra. "São mulheres apartadas de sua terra, que precisam sobreviver distantes de casa e que usam suas memórias para refazer o sentimento de pertencimento tão necessário à sobrevivência". Deriva, Pródiga e Cine Roxy são os poemas que refletem a identidade caiçara.


Há um ano sem visitar a cidade por conta da pandemia, Katia abraça um novo projeto, voltado inteiramente para a cidade de Santos. O livro O esgotamento de uma Ilha, ainda com título provisório, contará com memórias internas da autora e imagens vivas da cidade, contando em específico com referências de Araquém Alcântara.


O projeto, de certa forma, ajuda a lidar com a falta que a praia lhe faz. "Essa saudade da minha cidade está doendo latejada. Sem iodo e maresia não sobrevivo", comenta.


Em um esboço de introdução, Katia ressignifica a cidade onde nasceu, inspirada em fotografias. "Nos cadernos de observação encontrar a cidade visível e invisível, as memórias, as histórias, os afetos. Poder redizer os significados que habitam por dentro e ter uma outra ilha quem sabe, assim criou Ítalo Calvino suas cidades invisíveis". Ainda não há previsão de lançamento, porém, a poesia sobre sua terra vibra em novas pesquisas. "Hoje a poesia é ofício e estudo, uma entrega consciente do caminho a ser trilhado".


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