Em entrevista exclusiva para A Tribuna, MV Bill fala sobre música e ativismo social

Rapper comenta o novo trabalho, o rap em tempos de cancelamento, a amizade com Chorão (Charlie Brown Jr.), e o atual panorama sociopolitico

Por: Carlos Eduardo Oliveira, especial para A Tribuna  -  12/09/20  -  10:50
"No Brasil, o distanciamento social já existia bem antes da pandemia. Entre a favela e o condomínio"   Foto: Douglas Jacó/Divulgação

Em uma era paleolítica, o escriba, então trabalhando em uma conhecida revista de música pop, liga no horário combinado para um orelhão perdido na Cidade de Deus, zona oeste do Rio de Janeiro. Na outra ponta da linha, um talento promissor da comunidade explica o batismo artístico – por que “mensageiro da verdade”, MV, era bem diferente dos DJs, MCs e “manos” do rap paulista, que então dava as cartas.


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Corte para 2020. Alex Pereira Barbosa acaba de lançar Vivência, seu décimo-primeiro legado musical. Ao longo da carreira, MV Bill tornou-se não apenas grande artista e um dos maiores expoentes do rap, mas também porta-voz de um Rio que, sob as lentes atuais, é tão ou mais desassistido socialmente como no passado. Paralelamente à música, virou ativista social, fundando, com o empresário e amigo Celso Athayde, a ONG Central Única das Favelas, a Cufa, hoje presente em todos os estados brasileiros (e com sede em Nova Iorque chancelada pela ONU), cuja atuação durante a pandemia tem sido exemplar.


Semanas atrás, sua live para o Sesc de Brasília mobilizou uma legião de seguidores. “Recebo uma média de 30 convites para lives por dia, mas é preciso triar isso. Algumas não são seguras, aglomeram gente”, diz. Durante a produtiva quarentena, finalizou Vivência e um livro de contos, ainda sem previsão de lançamento. Incursões literárias não são novidade em sua paleta artística. A quatro mãos com Celso Athayde (hoje CEO do grupo Favela Holding), lançou em 2005, Cabeça de Porco e, um ano depois, Falcão – Meninos do Tráfico – este, em formato de livro e documentário, de enorme repercussão nacional, após sua exibição no Fantástico, da Rede Globo.


Na entrevista exclusiva para A Tribuna, Bill comenta o novo trabalho, o rap em tempos de cancelamento, a amizade com Chorão (Charlie Brown Jr.), e o atual panorama sociopolitico. Polarização? “E quando é que o Brasil esteve unido”?, dispara ele.


A Cufa, da qual você é um dos fundadores, vem exercendo um grande protagonismo ao longo da pandemia, amparando milhões de brasileiros carentes de Norte a Sul. Qual o sentimento em relação a isso?


De extremo orgulho. O trabalho da Cufa na pandemia é espetacular, uma ONG dando exemplo de como uma organização governamental deveria se comportar. Fiquei lá por 20 anos, e me afastei para cuidar da carreira musical. Porque no trabalho social, quando feito de verdade, você precisa abrir mão de muitas coisas. Mas após 20 anos, vi que já havia mais gente preparada, um time jovem, qualificado, formado na própria Cufa. Aí fui cuidar da minha vida, mas sempre acompanhando as ações.


A julgar pelo álbum Vivência, sua quarentena tem sido produtiva, não?


Sim, continuo produzindo de forma remota. Na verdade, eu já vinha no caminho de mudança do físico para o virtual antes da pandemia. Quando ela chegou, eu já tinha material pronto e fui construindo outras coisas no meio. Respeito os artistas que não quiseram ou não conseguiram criar na pandemia, e os que não quiseram fazer lives. No meu caso, criar na pandemia foi uma necessidade, e fazer lives, uma consequência do que já vinha fazendo antes.


Vivência surgiu como faixas individuais gravadas ao longo do tempo e que agora formam um álbum. Acha que conseguiu dar o senso de unidade que pretendia?


Sim, porque, como não tenho ninguém acima de mim, eu mesmo me cobro e tento me superar. Meu maior concorrente sou eu mesmo, são as vantagens de ser um artista independente. Isso dá liberdade musical, lírica. Também trabalhei com muitos produtores da nova geração, gente de Brasília, Goiânia, Rio, Portugal... Gente mais nova que eu, à exceção da Camila CDD, que é minha irmã. E isso foi muito legal, unir minha raiz, meu estilo de rap mais cru, a outros tipos de som, com diferentes influências.


Suas letras sempre contiveram um texto afiado. Como manter o teor crítico em tempos de cancelamento?


Cara, agora não dá para fazer música como no passado. Eu tenho modificado bastante o processo. Algumas linguagens que usei, não usaria hoje. Por exemplo, em Soldado do Morro (N.E. – um dos grandes sucessos do rapper), no trecho em que falo, “tem um monte de cachorra querendo me dar”, eu não canto mais nos shows. Apesar de ser o que eu ouvia os tais soldados do morro a quem eu retrato na música dizerem abertamente, hoje, eu, Bill, ficaria constrangido em cantar isso. Mas veja, isso não é deixar de ser verdadeiro, é apenas um filtro social. O tempo nos torna pessoas melhores. Vejo hoje coisas em meus primeiros trabalhos que não condizem com quem sou atualmente. É só um cuidado maior, há coisas que não queremos que digam de nós, então tenho que me preocupar em não dizer coisas que possam ofender as pessoas diretamente.


Você chegou a compor com o Chorão. Vocês eram amigos?


Sim, ele era um parceiraço, Temos músicas que compusemos juntos, em disco meu e do Charlie Brown. As pessoas pensam que nossa afinidade era apenas musical, mas ela foi além. Tínhamos uma conexão que evoluiu para amizade e chegou até ao skate. Eu era um entusiasta, mas como não levo jeito, me quebrei todo e preferia assistir ele andar. Aqui no Rio, a gente ia muito ao Madureira Skate Park, por sinal o melhor do País.


Em Insalubre, faixa que de certa forma sintetiza o recado de Vivência, você apresenta uma visão peculiar do que hoje se tornou um clichê denominar como País polarizado, dividido. “Só que nunca esteve unido”, diz a letra.


Exatamente. Fala-se muito hoje dessa parada de separação, mas em qual momento o País esteve unido? O distanciamento social na pandemia é necessário, mas ele sempre existiu. Entre o morro e o asfalto, a favela e o condomínio, e por aí vai. No Brasil, ele sempre existiu.


Traficando Informação, um de seus primeiros sucessos, dizia: “meu raciocínio é raro para quem é carente”. A internet mudou isso, nas comunidades?


Ajudou bastante. Mas não adianta democratizar a informação se não houver interesse político na mudança. Ainda há muitas consciências adormecidas, mas houve um grande despertar. Pegando carona nas palavras de meu amigo Celso Athayde, essa população, a quem chamavam de “carente”, começou a se descobrir “potente”.


Você sempre foi um entusiasta do Rio de Janeiro sem esconder suas feridas. O Rio tem jeito?


Cara, é triste demais ver o Rio nessa situação. Boa parte de uma juventude querendo trabalhar, mas sem ter emprego, boa parte sendo cooptada pelo crime. Maus políticos a granel... Em termos de instituições, o Rio é um vexame nacional. Continua com suas belezas naturais, o que de certa forma dá um alento, mas a feiura está na administração, na forma com que a cidade e o estado são administrados, com uma deterioração progressiva sem perspectivas de melhoras. A cada nova eleição, as bizarrices se sucedem... É meu estado, minha cidade, mas vejo tudo com pessimismo, atualmente.


Nunca se debateu publicamente o racismo como agora. Há boas iniciativas ganhando corpo em vários campos. Porém, assim como nos EUA, estatísticas mostram que, no Brasil, negros ainda têm muito mais chance de serem mortos pela polícia do que brancos. Como resolver isso?


Enquanto o Brasil não entender que violência policial contra negros é uma forma de racismo, não avançaremos. A mesma mídia que cobre episódios como o de George Floyd nos EUA, no Brasil denomina casos similares como “violência policial”. Aqui, cinco jovens negros que saem para comemorar um aniversário e levam mais de 100 tiros, não é racismo. Aqui, um músico e sua família que levam 80 tiros no carro, não é racismo. E tantos e tantos outros casos parecidos, que têm, sim, recorte racial, e que assim seriam retratados pela mídia e por vários setores da sociedade, nos EUA. A dificuldade do Brasil em racializar essa violência nos deixa alguns passos atrás na discussão. Se quisermos resolver essa questão, é preciso levá-la para o âmbito racial. Mas o que de fato pode mudar a situação é a política. E quem hoje está nos representando não tem isso como pauta. Isso só é problema quando morre alguém branco de classe média.


*Carlos Eduardo Oliveira é jornalista


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