“Não se nasce mulher, torna-se mulher”, disse certa vez Simone de Beauvoir. Em suma, a filósofa francesa defendia a autonomia feminina, que por séculos teve seu valor definido pela hierarquia social dos homens em sua régua do que seria a “verdadeira feminilidade” (em outras palavras, uma régua da submissão).
Diante da reflexão, entendemos como a liberdade da mulher sempre fora um problema na visão dominante – que em casos extremos, demanda uma correção a partir da violência. Pode parecer extremo, mas quem dera eu estivesse exagerando: segundo a 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, emitido em 2020, os casos de violência de gênero no País são crescentes. O anuário detecta que um estupro foi registrado a cada 8 minutos em 2019; No total, foram 66.123 boletins de ocorrência registrados em delegacias brasileiras.
Surpreendente? Nem tanto. A urgência de medidas para combater violências de gênero não é uma demanda de hoje, nem unicamente brasileira. É sobre isso que trata a série chilena La Jauría (em espanhol, a matilha), distribuída pela Amazon no Brasil após enorme sucesso de público e crítica no exterior.
Enquanto referencia um caso de estupro coletivo que chocou a Espanha em 2016, a série trata do desaparecimento de Blanca Ibarra, uma estudante e líder feminista de 16 anos que foi violentada por quatro alunos como parte de um jogo chamado “O Lobo”. A narrativa intercala entre a investigação policial e protestos estudantis contra um professor de teatro que cometeu abusos no colégio. A produção também questiona o posicionamento da justiça e da própria sociedade perante uma pandemia do abuso, relatando o aquiescimento das instituições sociais perante crimes hediondos.
Confesso às leitoras que permeiam estas linhas: não é uma série fácil. Porém, é justamente por isso que é tão necessária. É impossível não se arrepiar, enjoar, emocionar ou perder o fôlego diante das cenas explícitas de violência, que, infelizmente, não são obras da ficção. La Jauría retrata de forma crua a face mais abusiva e monstruosa do ser humano, mostrando como seus agressores tentam justificar o injustificável como “parte da natureza de caça”.
Enquanto as “matilhas” atacam e se protegem do indefensável, também temos que nos unir e lutar. Tornar-se mulher, afinal de contas, é um ato coletivo, de entender que a liberdade não existe se não for exercida por todas nós, juntas.