Clarice e Pagu, duas mulheres especiais

Em 1960, artigo comenta 'Laços de Família'

Por: Lúcia Teixeira & Especial para A Tribuna &  -  12/12/20  -  12:10
Talento, ousadia e quebra de preconceitos eram características de Clarice e Pagu
Talento, ousadia e quebra de preconceitos eram características de Clarice e Pagu   Foto: Reprodução

Dizem que não há coincidências na vida. Eu acredito. Não por acaso, estamos no tempo de relembrar e celebrar duas mulheres modernistas e pós-modernas: Pagu e Clarice Lispector. Hoje, são 58 anos da morte de Pagu (Patrícia Galvão), jornalista, escritora, militante política, que agitou a vida cultural de Santos e aqui terminou seus dias.


Clique e Assine A Tribuna por R$ 1,90 e ganhe acesso ao Portal, GloboPlay grátis e descontos em lojas, restaurantes e serviços!


Uma rica oportunidade para celebrar também Clarice Lispector, considerada uma das maiores escritoras brasileiras, igualmente jornalista, que completaria 100 anos neste dezembro.


Resgatei o belo texto de Pagu, com o pseudônimo de Mara Lobo, Laços de Família, publicado em A Tribuna em 7 de agosto de 1960, e não divulgado em nenhum outro meio após essa data. Trata-se de crônica sobre o lançamento do clássico Laços de Família, de Clarice.


Talento, ousadia, enigma, questionamentos, quebra de preconceitos e tabus sociais, características da vida e a da obra das mil e uma personas de Clarice e Pagu, tornam essas intelectuais cada vez mais presentes na atualidade. As duas morreram cedo. Clarice, aos 56 anos, com câncer no ovário; Pagu, aos 52, no pulmão. 


Corajosas e desbravadoras, expondo as feridas da alma, devastaram para o mundo suas entranhas sem pudor ou distanciamento. Expuseram também o lado esquecido da nação e da existência das pessoas mais pobres e vulneráveis. Como a de Macabéa, em A Hora da Estrela, de Clarice; e as trabalhadoras do Brás, em Parque Industrial, de Pagu com o pseudônimo de Mara Lobo.


Vida e literatura que dialogam com o momento pandêmico atual, em que tantos continuam sem direito à saúde, saneamento, comida, moradia.


Clarice escreveu: “O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes”. E os olhos de Pagu também receberam poema de Raul Bopp: “Pagu tem olhos moles/ Olhos de não sei o quê. Se a gente está perto deles/A alma começa a doer”. 
Mais do que a cor dos olhos, a vastidão dos seus olhares intimistas, contundentes e antecipatórios aproximam Pagu e Clarice, embora tivessem personalidades distintas. A crônica Laços de Família, escrita por Pagu a respeito do livro homônimo, é, na realidade, uma crítica literária inédita, atual, visionária, perspicaz, irônica, sagaz, política, recheada de muita informação histórica, para deleite de professores, historiadores, críticos, estudantes, literatos, filósofos e do público em geral.


Para os dias de hoje, uma crônica de Pagu sobre o livro Laços de Família, obra de Clarice Lispector, é um tesouro. Relembrar é uma forma de homenagear essas suas importantes mulheres por intermédio de sua própria e rica produção. Reencontrar essa crônica, um dos muitos documentos que fazem parte do acervo do Centro Pagu Unisanta, reunidos em minha pesquisa de tantos anos, me trouxe muita emoção.


Emoção por vislumbrar, nesse encontro das duas escritoras, todo o respeito e humildade de Pagu ao reconhecer a originalidade da linguagem de Clarice, que continua mais atual do que nunca em nossos dias. 


Pagu destaca o estilo marcante de Clarice e afirma que ela é a maior ficcionista do Brasil, uma contista de nosso tempo. Ela, plural em seu perceber, antecipou o futuro. Clarice por certo responderia que “escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”.


Reunir as duas para uma conversa sobre a maravilha e o horror da existência traz material para uma leitura apaixonada e verdadeira do nosso tempo, com todas as nuances psicológicas que a literatura permite. Como diz Pagu em sua crônica, “o livro de Clarice é uma lição límpida, comovida, inteligente, de como se pode amar a literatura”. 


Que essa lição continue eterna, da mesma forma que essas duas mulheres permanecem desvendando caminhos de liberdade. 


(*) Lúcia Teixeira é escritora, psicóloga, educadora, biógrafa de Pagu, indicada ao Prêmio Jabuti, e também Presidente da Universidade Santa Cecília.


Logo A Tribuna
Newsletter