'Christabel' transforma poema vampiresco pioneiro em romance feminista e sensual

Criando pontes entre o universo fantástico e a mística feminina, o longa busca conscientizar sobre papéis de gênero e homofobia

Por: Beatriz Viana  -  25/02/21  -  18:53
'Christabel' estreia nesta quinta-feira (25) nos cinemas e estará em breve no Canal Brasil
'Christabel' estreia nesta quinta-feira (25) nos cinemas e estará em breve no Canal Brasil   Foto: Reprodução

Inspirado no poema gótico homônimo publicado em 1816 pelo britânico Samuel Taylor Coleridge, o longa Christabel navega entre a fantasia e o romance em uma trama delineada pelo empoderamento feminino. O longa estreia nesta quinta-feira (25) nos cinemas e estará disponível em breve no Canal Brasil.


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Em seu primeiro longa metragem de ficção, o cineasta Alex Levy-Heller dirige uma equipe igualmente estreante no gênero para a composição de uma obra extremamente poética, bucólica e intimista. A trama acompanha a rotina da jovem Christabel (Milla Fernandez) e seu pai, um trabalhador rural chamado Leonel (Julio Adrião).


Eles levam uma vida simples no cerrado, até que no meio da noite, Christabel encontra uma mulher abandonada no mato, que diz ter sido abusada e que precisava de ajuda. Bondosa, Christabel convida a moça, que se chama Geraldine (Lorena Castanheira), para passar a noite e se recuperar. Porém, a visita acaba mudando sua vida por completo ao passo que a tensão sexual entre as duas contraria todas as crenças da menina.


O paralelo entre a lenda vampiresca e a mística feminina veio do estudo desse poema. “Christabel foi um dos primeiros vestígios literários onde a figura do vampiro aparece, antes do Drácula de Bram Stoker, e ainda na figura de uma mulher, o que torna a coisa mais interessante. Para época que foi publicado, foi muito polêmico, porque além de ser uma vampira, ela tem uma relação com a sua presa, outra mulher. São ingredientes extremamente explosivos”.


A relação do universo fantástico com o feminismo não é novidade: Coleridge era seguidor de Mary Wollstonecraft, filósofa e escritora feminista que era mãe de Mary Shelley, a autora de Frankenstein. “O filme extrapola esse papel social e coloca como a mulher como uma potência, uma força da natureza. Essa consciência do feminino para além do que esse corpo representa aqui coloca a mulher em outros lugares muito maiores, e não é a toa que a trajetória da Christabel acompanha simultaneamente essa proximidade com a imortalidade”, comenta Milla, que deu vida à personagem.


Para Milla, que tornou-se protagonista logo em seu primeiro trabalho, o processo foi bem desafiador. “A Christabel é o oposto de mim (risos), foi muito difícil. Nesse processo, tento buscar paralelos para me aproximar da personagem, para encontrar essas nuances e entender o porquê dela ser uma mulher que fica, que resiste tanto às mudanças. O trabalho intenso foi muito importante para começar esse processo de empatia pela Christabel, para entender tudo que ela representa. Foi realmente um processo de autoconhecimento, para conseguir entendê-la”, revela.


Bastidores


A adaptação da história para o cerrado brasileiro foi uma opção viável e criativa, tornando o barão em um trabalhador rural, seu castelo em um casebre e a donzela em perigo numa camponesa. Com baixo orçamento, o projeto foi filmado em 12 dias, após ensaios intensos e a energia vibrante de uma equipe inteiramente devota ao seu sucesso. Segundo Lorena, que também assina a produção do longa, o resultado foi motivo de orgulho para toda a equipe. “Foi uma carga muito grande, mas fomos além do esperado”.


O diretor conta que o diferencial do trabalho esteve nesses ensaios. "O maior desafio foi trabalhar com as atrizes e criar essa química que elas imprimem na tela. Tínhamos que chegar lá, falar 'ação' e acertar; quanto menos tempo filmando uma cena, melhor".


Um dos principais destaques do longa é a fotografia, assinada por Vinícius Berger, que também faz sua estreia na ficção. "Ele compreendeu imediatamente a proposta. Quando você limita um artista, ele passa a ser criativo. Eu disse: 'você tem uma câmera, um spot de luz e esse espaço aqui para fotografar as atrizes e cenas. É isso que a gente tem. O que a gente quer são quadros'. E a partir daí veio a criatividade. Ele fez um excelente trabalho. Podem falar mal do filme, da direção, da trilha sonora, dos atores, tô nem aí: a fotografia é uma unanimidade e eu fico muito feliz com isso (risos)", brinca o diretor.


Inspirações


Alex reuniu várias referências para compor sua primeira obra de ficção. "Tem diretor que não assiste cinema para não achar que vai copiar, mas eu gosto muito de assistir filmes autorais, loucos, e até certas bobagens, que é onde você encontra coisas interessantes. Tem uma produtora chamada Hammer Productions que faz vários filmes de vampiros, mas explorando demais a sensualidade e a sexualidade da mulher".


"Você tinha as vampiras lésbicas, a filha do Drácula, condessa Drácula, todos exploravam demasiadamente a sexualidade. E a primeira coisa que eu quis fazer era exatamente o oposto disso. Fui buscar em filmes autorais, como A Ilha do Milharal [2014, de George Ovashvili], que tem pouca locação e poucos atores, uma câmera excelente no escuro; emA Terra e a Sombra [2015, César Augusto Acevedo], busquei muito sobre enquadramentos, sem muita mise-en-scène dos atores".


Além do cinema, as artes, em geral, também formam boas referências para o cineasta. "Busco muita inspiração em obras de arte, música e livros. Gosto de escutar de música clássica ao rock daquelas bandas que tacam fogo em igrejas na Noruega (risos), para mim isso me inspira. Em Jovens Polacas usei várias referências de pintores famosos, e em Christabel também".


Sexualidade feminina


A trama traz o relacionamento LGBTQI+ e a descoberta da sexualidade de forma natural, sem sexualização. Para o elenco, a abertura com que puderam trabalhar foi essencial. Lorena diz que a construção das personagens foi um processo muito pessoal para cada uma. "Nem Christabel ou Geraldine tiveram imposições.O mais bonito dessas construções é a não limitação. Elas [as personagens] ficaram grandes, justamente porque você não consegue decifrar o que está por trás das duas. Foi um processo árduo, intenso, mas muito interessante".


A partir de uma lenda indígena, veio a cena da manga, onde Christabel se masturba pela primeira vez. "Existe a história de que uma índia chupou uma fruta e conforme descia o caldo dessa fruta, ela foi fecundada. A partir dali ela ficou grávida de um bebê, uma entidade. Achei muito simbólico e lembrando dessa história indígena, incluí no roteiro. A cena começa de uma forma muito natural, e aos poucos ela vai descobrindo seu próprio corpo. Ela vai limpando o caldo que escorre da manga e vai se descobrindo", conta Alex.


Para a protagonista, a cena foi necessária para a trama. "Éo primeiro encontro sexual dela e esse primeiro encontro é com ela mesma.Antes do encontro físico entre elas duas, existe o encontro dela com ela mesma, ela se enxergar, se entender e a partir de então transgredir, o que quer que essa transgressão seja (risos).Me senti extremamente confortável, foi um encontro muito honesto, genuíno e orgânico".


Milla acredita que a cena também é simbólica na relação religiosa e associação com o pecado. "Essa descoberta do prazer, apesar da masturbação ainda ser tabu em muitos lugares e círculos, foi muito prazerosa. Poder fazer esse encontro dela com ela mesma e as possibilidades de se fazer bem, algo que não tenha uma utilidade prática como limpar, fazer o café, mas sim única e exclusivamente servir para o seu prazer, e mostrar que isso é permitido e válido. A manga estava ótima (risos)".


Simbolismos


Christabel é escrito pelas sutilezas, deixando muito texto nas entrelinhas para entendimento de cada espectador. Alguns toques simbólicos ajudam na ambientação da trama, como o convite para entrada do vampiro, a queda de um crucifixo como a quebra da inocência, e claro, os morcegos.


Os animais, no entanto, foram uma grata surpresa. "Eles não saíram por nada. Era para estar lá, compor as cenas e ficar ainda mais contextualizado. Nas cenas mais escuras, eles cortam especialmente por trás de mim. É incrível! Nem que a gente quisesse a gente conseguiria algo tão incrível. O fator sorte estava aí. Muitos morcegos, mas eles foram gentis no percurso (risos)", conta Lorena.


Para Alex, os morcegos como personagens conferiram maior profundidade à obra. "A maioria dos morcegos saiu sem a gente precisar fazer muita coisa, mas aproveitamos os que estavam lá para virarem personagens do filme também. A Geraldine atrai essa questão da natureza, assim como na cena do gavião, e isso adicionou à personagem".


A falta da mãe também é um ponto importante para o desenvolvimento da Christabel na trama. Segundo Milla, esse fator tem uma relevância primordial para sua transformação. "Com a morte da mãe no parto, o pai infelizmente não soube lidar com isso e colocou a culpa em cima dela, responsabilizou-a pela morte da mãe. Acho que essa culpa é um fator essencial pro comportamento da Christabel ao longo do filme todo. Essa resistência às mudanças é também para honrar a imagem da mãe, se redimir... A culpa cristã, uma coisa pesadíssima", reflete.


Alex deixa o final do filme em aberto, com o desfecho das duas protagonistas para interpretação de cada espectador. “O mais interessante do poema é que ele é inacabado. Você toma um susto quando acaba, porque o Coleridge [Samuel Taylor, autor do poema] não terminou de escrever. Até pensei em ser ainda mais fiel à obra e terminar o filme no meio (risos)”. Segundo o elenco, muitas pessoas criam teorias sobre as duas, indagando até se Geraldine seria uma mulher, uma entidade ou um alter ego da protagonista. Seja como for, a química inegável entre as duas torna a obra muito mais interessante.


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