Autor da biografia 'Roberto Carlos em Detalhes' fala sobre os 80 anos do rei

Paulo Cesar de Araújo comenta que o Rei 'era um jovem interiorano, mas de olhos voltados a Nova Iorque'

Por: Do Estadão Conteúdo  -  19/04/21  -  07:26
   Biografia de Roberto Carlos chegou até a ser banida em processo judicial movido pelo rei
Biografia de Roberto Carlos chegou até a ser banida em processo judicial movido pelo rei   Foto: Reprodução

Fora do círculo íntimo de Roberto Carlos, Paulo Cesar de Araújo talvez seja a pessoa que mais conhece o Rei – para o bem e para o mau. Historiador e jornalista, Paulo é o autor da biografia Roberto Carlos em Detalhes. Lançada em 2006, ganhou notoriedade extra por ter um opositor no próprio biografado: Roberto foi aos tribunais para banir o livro. Após anos de disputa, um acordo, em 2014, selou o destino da obra. Agora, Paulo lança mais uma biografia do Rei: Roberto Carlos – Outra Vez (Record, R$ 74,90, em pré-venda a partir de hoje). “Em Detalhes, eu partia da vida para falar das canções. Agora, parto das canções para falar da vida”. Nesta entrevista, Paulo descreve e analisa a origem, as inspirações, o talento e a sorte de Roberto Carlos na escalada ao sucesso. Também toca no longo e doloroso processo judicial e suas impressões sobre o caso.


Clique e Assine A Tribuna por apenas R$ 1,90 e ganhe acesso completo ao Portal e dezenas de descontos em lojas, restaurantes e serviços!


Por tudo o que você pesquisou e viveu, quem é Roberto Carlos?


É um menino do interior. Esse é um aspecto que ele nunca perdeu. Aliás, ele escolheu morar na Urca, quando estava procurando apartamento no Rio, porque o bairro tem um ar interiorano. Ele era um jovem interiorano e suburbano, mas de olhos voltados a Nova Iorque. Com os lançamentos, os filmes, as músicas. Isso vai se refletir na obra dele, que terá características do Brasil profundo, por isso essa capacidade de tocar as pessoas, mas antenado com as tecnologias e a música cosmopolitas.


Roberto chega aos 80 como Rei. A formação, por si, explica o fenômeno?


Aí temos o talento, o mistério da criação. A questão da formação mostra o motivo da obra dele ter feito canções nesse estilo, Lady Laura, Amada Amante. A forma como essas músicas foram feitas, gravadas, as melodias, fazem parte do talento. Como Pelé foi craque na bola, Roberto, assim como John Lennon, Paul McCartney, Caetano, Chico, são craques na canção, pegam a fórmula de um jeito que atinge milhões de pessoas.


A música que Roberto fazia nos anos 60 era uma, a de hoje, outra. Além do talento, há um poder de adaptação aí, não?


Tem um outro detalhe muito importante: ele é um dos maiores administradores de carreira Às vezes, o artista tem talento, mas toma decisões equivocadas. Desde que chegou no topo, Roberto foi na medida, fez mudanças gradativas, saindo da Jovem Guarda para o soul (music), para o romântico. Entrou na Globo quando era para entrar (1974) e não lá atrás, em 1966; fez o Canecão na hora certa (primeira temporada de shows na casa, aclamada, em 1970).


Esse tino para administrar a carreira explica o silêncio dele em questões sociais e políticas, pelo qual ele sempre foi cobrado?


É uma decisão consciente. Se vai dividir, ele fica fora. Só vai naquela coisa de ecologia, mais genérica, que não leva a racha. Isso foi usado como estratégia, para não perder público. Ele mira a maioria, evita desgaste. Mas, de maneira geral, ele apoiou as Diretas Já, por exemplo. Não foi em comício, nem show, mas viu que todo mundo era a favor, se posicionou em jornal e televisão.


No início da carreira, houve a dúvida: rock ou bossa nova? O fato da bossa ser música de elite, de certa forma jogou Roberto no colo do rock? A história poderia ter sido outra se fosse aceito na turma da Zona Sul?


Sim. E não necessariamente com a bossa nova. Ele poderia ter dado certo como cantor de bolero. O primeiro disco, de 1961 (Louco por Você), abre com um bolero. O ritmo estava em alta. Se aquela música tivesse feito sucesso, ele provavelmente gravaria um disco de bolero, se acertaria na composição e ficaria um jovem cantor do gênero, como Altemar Dutra, que tem a mesma idade. Altemar acertou no primeiro bolero e seguiu a vida inteira assim. A trajetória de Roberto é muito de circunstâncias, de acasos. O que apontou naquele primeiro disco foi o rock. Logo depois surgiram os Beatles e aquele menino já estava naquela música. Se o rei do mundo fosse um cantor de bolero, a história teria sido outra...


Qual foi o momento capital ou mais conturbado da carreira dele? E como ele superou?


Um ano-chave foi 1968. Estavam ocorrendo transformações, a explosão da Tropicália, a Record entrando em decadência. Até ali ele não era confirmado como o Rei. Foi aí que ele tomou decisões acertadas, fez os discos certos, foi para San Remo (festival da canção na Itália, que Roberto venceu), gravou um dos maiores álbuns da carreira (O Inimitável), administrou bem a incerteza.


Quais canções dele são mais autobiográficas?


Ele só canta o que vive e sente, não é porta-voz, não interpreta um personagem. Pega Caminhoneiro: quando criança, ele via os caminhões passando em frente à casa dele, queria dirigir um daqueles. Na música ele tá ali realizando uma fantasia de infância. Diferente do Chico, por exemplo, que imagina o cara morando na favela, a menina no morro, e se transporta. Não que um seja melhor ou pior do que o outro: são tipos distintos de compositores.


E O Divã e Traumas, em que ele fala de questões profundas da infância?


São canções confessionais. Mais que biográficas, são mais explícitas. Lady Laura é isso também. Fala da proteção nos momentos de insegurança, quando a mãe o acolhia.


Essas canções confessionais são do início dos anos 70. Ele estava vivendo um momento difícil, remexendo o passado, a infância, o acidente?


Com o sucesso consolidado, ele sentiu necessidade de verbalizar mais isso. Ele vai dar entrevistas, fala nos shows. Aos 30 anos: ele não falou antes, nem voltaria a falar depois. Foi justamente nesse período de calmaria, que ele começou a olhar para dentro de si.


Roberto Carlos em Detalhes está superado? Como é o novo livro?


Não há mais nada em aberto (com Em Detalhes). Estou lançando Roberto Carlos - Outra Vez agora, depois da mudança da lei (393/2011, sobre biografias não autorizadas). É a mesma história, que não mudou, contada de outra forma. A obra será em dois volumes, o primeiro, de 1941-1970, sai agora. O segundo volume, de 1971-2021.


Como é essa outra forma de contar a vida do Rei?


Em Roberto Carlos em Detalhes eu partia da vida para falar das canções, agora eu parto das canções para falar da vida. O capítulo 1 é O Divã: “eu lembro a casa com varanda”, então eu entro na casa com ele. Em Meu Pequeno Cachoeiro: “a minha escola, a minha rua”, visito a escola, falo com as professoras, o aluno que ele foi. O livro é em dois planos, à medida que conto a vida, também falo como cada música foi escrita e gravada.


Após tantos anos de batalha judicial e com Roberto Carlos em Detalhes fora de circulação, você sabe o motivo que o levou a entrar na Justiça contra o livro? Até onde eu saiba, nunca houve um motivo legal concreto.


Não tem explicação. Seria mais fácil explicar se houvesse um fato específico, ‘ah, foi por isso aqui’. Não há. Creio que é mais complexo. Há o Transtorno Obsessivo Compulsivo, a necessidade de controlar tudo ao redor, a falta de contato com o livro, e a visão patrimonialista da história dele, como algo material, como se fosse um carro.


Apesar de tudo, você ainda é fã de Roberto Carlos?


Sou um profissional da memória, da pesquisa. Não brigo com as minhas fontes. Não tomei isso como uma questão pessoal. Seria assim com qualquer pessoa que fizesse algo na mesma circunstância.


Se você tivesse a chance de encontrá-lo hoje, olho no olho, sozinho, o que diria?


Basicamente, que foi um equívoco tudo isso, mal-entendido. Não tive essa intenção (de magoá-lo). Quero paz e amor; obrigado, senhor, mesmo que eu sofra: é isso, as canções.


Logo A Tribuna
Newsletter