A arte como coquetel molotov: Os 40 anos de London Calling

Álbum do Clash é um manual sobre o significado da atitude do rock

Por: Eduardo Cavalcanti & Colaborador &  -  20/12/20  -  12:04
Lançado em dezembro de 1980, o álbum era um deboche ao senso comum
Lançado em dezembro de 1980, o álbum era um deboche ao senso comum   Foto: Reprodução

No auge do punk, o Clash anunciava que não havia mais Elvis, Beatles e Rolling Stones em 1977. Todos já tinham virado história. O presente eram os Sex Pistols. Em mais dois anos, seria o próprio Clash, com um dos maiores álbuns de rock da história, London Calling. E como a então maior banda do mundo superava o seu próprio auge? Tomando a decisão, muito punk, de não dar a menor bola para isso e confundir todos que esperavam um London Calling 2 com o caótico, provocador e brilhante Sandinista.


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Lançado em dezembro de 1980, o álbum era um deboche ao senso comum. Tudo o que uma banda de rock não deveria fazer estava nos seis lados do vinil original de Sandinista. A começar por esse detalhe, nada desprezível, de que se tratava de um álbum triplo. Na era da música por streaming, sequer faz sentido falar em discos duplos ou triplos, mas no mundo pré-digital, a duração de um álbum equivalia a uma declaração de princípios.


O disco triplo era uma aberração, a demonstração máxima de autoindulgência no rock. O punk aconteceu justamente para acabar com esse tipo de coisa, o que tornava ainda mais desconcertante a decisão do Clash. O título, por sua vez, se referia a um movimento revolucionário em andamento na Nicarágua, o que, automaticamente, elevava ao grau máximo o nível de politização da banda, e ao mínimo seu potencial de vendas.


Para completar, chamar o som de Sandinista de punk era uma enorme licença poética, num álbum contendo de jazz lounge a ritmos caribenhos, passando por valsa fake, arena rock, funk, blue-eyed soul, dub reggae e um punhado de esquisitices musicais inclassificáveis. As peças estavam todas no lugar para que o Clash sofresse uma retumbante derrota. Acabou com uma vitória indiscutível nas mãos.


Sandinista merece ser lembrado, 40 anos depois, porque é a prova definitiva de que o punk original não tinha nada a ver com o estereótipo de música unidimensional, feita com amadorismo para rebeldes de butique. O álbum era uma antena captando todas as questões relevantes da Inglaterra e do mundo num momento específico, mas que teria inúmeros paralelos nas décadas seguintes - uma garantia de sua relevância atemporal.


Por mais que isso, eventualmente, seja difícil de entender no mundo polarizado de 2020, a banda não estava fazendo proselitismo político, e sim arte. E a arte tende a ser política a seu próprio modo, com suas próprias regras. As do Clash se resumiam a um único princípio: ter atitude.


Quem mais ousaria abrir um álbum punk com um funk, The Magnificent Seven, e só apresentar algo parecido com rock convencional quatro faixas depois, em The Leader? Isso sem mencionar que o som clássico do Clash só apareceria, de fato, no meio do lado 2 do primeiro disco, em <FI5>Somebody Got Murdered.


Só uma banda com a noção exata do que significava no universo da cultura pop, e no auge de sua força criativa, seria capaz de produzir música como as que o Clash oferecia – não só nos álbuns, como também emsingles, igualmente devastadores. Basta lembrar que a apocalítica versão cover do reggae Armagideon Time foi nada mais que um lado B.


Todas as invariáveis críticas (de inconsistência) e comparações (ao Álbum Branco dos Beatles) feitas a Sandinista deixam de captar seu verdadeiro significado. O Clash via o rock como coquetel molotov. Havia muito o que queimar, o que confrontar, e não faltavam combustível e fogo nas mãos da banda. Se ela atirava em todas as direções, é porque os alvos estavam lá. Era proposital, e não acaso, ou arrogância. Duas guitarras, baixo, bateria e a voz visceral de Joe Strummer eram o meio. Tornar a música algo vital, a mensagem.


O que faz uma banda de rock ser grande é a capacidade de não só estar em sintonia perfeita com o próprio tempo, como ir muito além dele, e se manter um ponto de referência essencial. Por essa razão, o Clash é uma das maiores que já existiram. Na virada dos anos 70 para os 80, uma época em que competidores não estavam em falta, ninguém foi maior. Nos últimos 40 anos, e provavelmente nos próximo 40, também.


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