Já comeu tubarão hoje? Pesca predatória está dizimando espécie

Desconhecimento dos consumidores está acabando com tubarões e raias

Por: Marcus Neves Fernandes  -  16/01/22  -  09:58
Estima-se que existam mais de 500 espécies de tubarões no mundo, 90 delas na costa brasileira
Estima-se que existam mais de 500 espécies de tubarões no mundo, 90 delas na costa brasileira   Foto: Adobe Stock

Há 400 milhões de anos, antes mesmo de os dinossauros dominarem os continentes, os tubarões já habitavam os oceanos. De lá para cá, pouco mudaram e, se não fosse o ser humano, talvez ainda conseguiriam existir por outros tantos milhões de anos. Contudo, o fato é que, hoje, a sua sobrevivência é incerta.


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Estigmatizados como assassinos, mutilados e caçados quase à exaustão, eles são consumidos diariamente com o prosaico nome de cação: pouca gente sabe que se trata, na verdade, de tubarão (e raia).


Para mudar essa realidade, o Instituto Sea Shepherd, uma ONG internacional que luta pela preservação oceânica, decidiu criar uma campanha que tem como objetivo alertar os consumidores, os comerciantes e os chefs de cozinha, entre outras pessoas.


Tóxico
O primeiro objetivo – e talvez o mais óbvio – é evitar a extinção de um grupo que tem um papel fundamental na natureza. Já a segunda meta – não tão evidente – tem relação direta com a saúde humana.


Hoje, boa parte dos tubarões e raias possui quantidades acima do aceitável de substâncias tóxicas no corpo, entre elas o mercúrio.


Esse elemento químico provoca distúrbios neurológicos, renais, no fígado e na pele. Compromete os sistemas reprodutor e imunológico. E, em mulheres grávidas, pode causar malformações fetais e até a morte de bebês.


Santos
Por essas e outras consequências, a Sea Shepherd fechou uma parceria com a Prefeitura de Santos, por meio das secretarias de Educação e Meio Ambiente.


O Município, que já não consumia carne de tubarão na merenda escolar desde 2010, agora se comprometeu a não mais utilizar o produto.


“É a primeira cidade brasileira a aderir à campanha e isso já está motivando outras a seguir o exemplo”, afirma a diretora-executiva do Instituto Sea Shepherd Brasil, Nathalie Gil.


Em fevereiro, o instituto fará uma ação educativa nas praias de Santos, com várias atrações, reforçando essas e outras mensagens junto ao público. “Ainda há hábitos que persistem e que precisamos eliminar. Um deles é o finning”, explica Nathalie.


Cardápio
Finning é o termo que designa uma prática atroz. Trata-se do consumo de barbatanas de tubarões, uma iguaria, principalmente nos mercados orientais e restaurantes chineses e japoneses.


Para obter as barbatanas, que valem muito mais do que o peixe em si, os pescadores as decepam e atiram ao mar o tubarão, que, muitas vezes, irá morrer em agonia.


“Há anos, eliminamos dos nossos cardápios as barbatanas, justamente pela forma como são obtidas. Nada justifica tamanha atrocidade”, afirma o chef e dono de restaurante em Santos Márcio Okumura.


A vida no caldeirão da bruxa
Barbatanas de tubarão, pênis de tigre, dente de jacaré, chifre de rinoceronte, bílis de urso, cauda de raia e uma pitada de pó de cavalo-marinho. Pode até parecer uma receita, tipo caldeirão de bruxa, mas não é.


Na verdade, esses e outros “ingredientes” fazem parte de hábitos há muito tempo arraigados em certas culturas, seja pela crença de que essas substâncias trazem algum tipo de benefício ao ser humano, seja em rituais que prometem todo tipo de conquistas materiais ou sexuais.


Há, até mesmo, o uso para artesanato, como é o caso da cauda de raia – peixe que também faz parte da mesma subclasse dos tubarões, os elasmobrânquios –, uma prática comum na nossa região, vendida inclusive pela internet.


Desequilíbrio
Independentemente da crença, sempre sem qualquer fundamento científico, é bom frisar: esses hábitos provocam danos irreparáveis, cujas consequências são prejudiciais aos próprios seres humanos.


O motivo básico é sempre o mesmo: a vida na Terra é uma cadeia interligada, um frágil equilíbrio, que, quando comprometido, gera consequências ainda pouco previsíveis.


“Por serem predadores de topo ou mesopredadores, os tubarões e raias exercem um papel fundamental no equilíbrio das interações tróficas nos oceanos. E, portanto, a sua remoção em larga escala pode causar danos irreparáveis ao ecossistema”, explica a cientista da Sea Shepherd Brasil, Bianca Rangel.


No Mar Mediterrâneo, por exemplo, a pesca insustentável de tubarões e outros predadores produziu um abrupto aumento do número de águas-vivas, que se alimentam de ovas e larvas de peixes, desequilibrando a cadeia alimentar e (adivinhe?!) comprometendo a atividade pesqueira. Um círculo vicioso. Um tiro no pé.


Desafio
O desafio para reverter essa situação é modificar hábitos. E, para isso, tudo começa com uma mudança de atitude.


“É preciso saber o que você está consumindo, entender que fazemos parte dessa cadeia e que as nossas ações, até mesmo no mais singelo ato de comprar um produto, acabam tendo consequências”, afirma o engenheiro químico Márcio Gonçalves Paulo, secretário de Meio Ambiente de Santos.


“Nós somos parte do planeta e não vivemos à parte. As nossas atitudes de consumo fazem a diferença e precisamos mudar os nossos hábitos já”, observa Lawrence Wahba, cineasta, documentarista, cinegrafista subaquático, ambientalista e embaixador da Sea Shepherd.


A origem do mercúrio
Inúmeras pesquisas demonstram que os peixes são o alimento mais contaminado por mercúrio que os seres humanos consomem. A maioria, porém, tem as chamadas quantidades aceitáveis do metal. Já os predadores, aqueles que se alimentam de outros peixes e demais criaturas marinhas, apresentam concentrações acima do que é considerado seguro. O mercúrio, assim como outras substâncias tóxicas, vem em grande parte da ação humana. As principais fontes são lixões, a indústria, as fazendas marinhas e o garimpo, como na imagem, na Amazônia.


A origem do nome
Além da conveniência, que torna o produto mais vendável, o termo cação, no Brasil, teria origem na palavra espanhola “cazón”, que designa todas as espécies de tubarões, segundo Hugo Bornatowski, da Universidade Federal do Paraná. Enquete feita pelo instituto de pesquisa Blend New, comissionada pela Sea Shepherd, constatou que 69% dos brasileiros não sabem que cação é tubarão. Já 84% não sabem que também há altas concentrações de metais pesados, como o mercúrio. Quando informados sobre cação ser tubarão ou raia e quanto ao seu perigo à saúde, 73% dos brasileiros defendem que devemos parar de consumir cação, quase o dobro dos pontos percentuais (38%) do grupo não exposto a essa informação, e 80% acreditam que se deve proibir carne de cação nas merendas escolares. No Brasil, a carne de tubarão é vendida em postas, como na imagem. É comumente servida nas merendas escolares por ser uma carne de peixe mais barata e sem espinhas.


A vida em números
Pelo menos, 150 milhões de tubarões são mortos todos os anos, seja pela pesca de espinhel, por “esporte” ou pela prática do finning (na imagem, na sua forma mais tradicional, a sopa). O resultado: mais de 90% da população de grandes tubarões do mundo já foram exterminados, porque essa sanha comercial, aliada ao desconhecimento, é mais rápida do que a capacidade de reprodução das espécies. No Brasil, a situação é alarmante: 40% das espécies de tubarões e raias já estão ameaçadas de extinção. Atualmente, o Brasil é o maior importador de carne de tubarão do mundo.


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