Festas e pandemia, uma dupla contraditória

“A pandemia ensinou que é no coletivo que a gente existe"

Por: Suzane Gil Frutuoso  -  23/01/22  -  14:20
Suzane Gil Frutuoso aborda o retorno do distanciamento social entre a família
Suzane Gil Frutuoso aborda o retorno do distanciamento social entre a família   Foto: Adobe Stock

Então, foi Natal. E o que você fez nesse momento de reencontro com a parentada? Sei de gente que começou a achar o distanciamento social uma possibilidade a ser normalizada nas festas de fim de ano. Que na primeira hora, com a ceia nem servida, ouviu coisas do tipo:


- Cadê as “namoradinha”?

- Nossa, continua solteira?

- Nossa, como você engordou! Está deselegante.

- Nossa, como você emagreceu! Parece doente.

- Minha torcida é para que o Santos seja rebaixado mesmo! Aqui é “Curintia”!

- O Fabio Luiz perdeu o emprego? Mariozinho Júnior foi até promovido, em plena pandemia! Mas a gente sabe que o meu filho sempre foi diferenciado, não é?

- Vai engravidar quando? Sua hora está passando…

- Credo, você tem coragem de ter outro filho?

- Está envelhecida! Devia pintar esse cabelo!



As perguntas, afirmações, exclamações indiscretas e intrometidas de sempre voltaram na mesma velocidade das contaminações por covid. Aquele turbilhão de emoções de 2020, que fez todo mundo querer ver todo mundo (até quem nunca via), se dissipou ao primeiro sinal de constrangimento pela falta de noção de parte das pessoas – vale usar máscara para se esconder?


E teve a uva-passa no arroz. A maçã na maionese. Quem fica com a coxa do peru. Isso sem contar a polarização política e os brios mexidos com temas atuais – não, não existe racismo reverso; estudar é preciso.

Deu briga. Aborreceu. Causou desconforto.


Muitos sentiram frustração com os reencontros. Mas a pandemia não está aí para a evolução humana? Olha, vai ver por isso ainda não acabou. Estamos longe de sermos realmente melhores. A questão é que, em maior ou menor grau, isso inclui cada um de nós. Porque os sem noção aparecem mais, são a turma do “falo mesmo”, se consideram muito sinceros (e não grosseiros, como você e eu acreditamos). Só que a gente não pode esquecer de avaliar quanto os nossos próprios defeitos aumentam a fervura das situações.


Não é sobre engolir sapo. É entender qual é a sombra que faz crescer dentro de você raiva ou impaciência com uma bobagem que falam. E aí devolver na mesma moeda.


Não é sobre aceitar conviver com gente agressiva, em relações abusivas e tóxicas. Do medo e do risco, sejam quais forem, precisamos nos preservar. É compreender que algum grau de desentendimento é o natural da vida. Sem falar nos valores. Seu tio vai perguntar das “namoradinha” e sua avó, quando você vai engravidar. Eles enxergam nisso alguma ideia de realização, de felicidade. Mesmo que para você não seja, de um jeito meio torto é como eles demonstram afeto.


Sim, o povo da picuinha existe, eu sei. A galera da provocação sempre está pronta para ver se o circo pega fogo gratuitamente. Mas aí, para não instaurar uma guerra civil na sala de jantar, só resta observar e tentar considerar: qual será o sofrimento que essa pessoa carrega para precisar despertar a dor em quem a cerca? É um exercício de desprendimento das emoções e de empatia nada simples de praticar. Mais necessário do que nunca quando estamos tão cansados e com pavios encurtados por tantas incertezas e oscilações no horizonte.


Até porque, com as ilusões dissolvidas, a pandemia ensinou que é no coletivo que a gente existe. Estamos interligados das mais diversas formas. Coletividade significa relações. Vamos ter que lidar com isso.


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