"Conformar-se com a idade não é abandonar os sonhos"

A frase é de Edith Pires Gonçalves Dias, personagem conhecida no universo cultural de Santos

Por: Arminda Augusto & Editora-chefe &  -  30/06/19  -  22:48
Edith Pires Gonçalves Dias, autora dos livros Memórias do Casarão Branco e Vivendo Martins Fontes
Edith Pires Gonçalves Dias, autora dos livros Memórias do Casarão Branco e Vivendo Martins Fontes   Foto: Alexander Ferraz/ AT

Membro da Academia Santista de Letras e defensora da preservação do patrimônio histórico e cultural de Santos, Edith completa 100 anos no próximo sábado (6). Abaixo, um pouco de seu relato sobre a vida:


"Éramos em 12 filhos, sendo 7 mulheres e 5 homens. Eu era a caçula. Só eu estou viva. A minha maior glória nessa vida foi salvar o casarão branco, tanto que lá na parte de baixo, quando sobe a escada, tem o meu pequeno museu, com a minha coleção de xícaras, a toalha usada no casamento de todos os filhos.... tá tudo lá. Eu tinha 3 pra 4 anos quando fui morar no casarão branco.


A orla não tinha o movimento que tem hoje, claro, mas passava procissão. Em dia de procissão, o jardineiro lá de casa cortava palmeiras e colhia flores do jardim para colocar nas calçadas e na rua. Ficava tudo enfeitado.


Era uma vida muito bonita. Naquela época, a orla da praia tinha muitos casarões, mas nenhum com a grandeza do casarão branco. Ele é o único que vai de ponta a ponta. Na parte que dá para a Epitácio Pessoa, minha mãe plantava de tudo um pouco: manga, laranja, goiaba. Tínhamos um campo de croquet, balanço, quadra de tênis. Aquilo é um patrimônio de Santos.


Quando era já mais adolescente, minha mãe comprava chita na Pernambucanas, que era onde hoje fica a Lojas Americanas, no Centro. Eu sempre tive mania de casa arrumada.


O primário eu fiz no Stella Maris, mas quando veio a crise e o meu pai foi perdendo tudo, fui transferida pro São José e depois já fiz o Normal também.


Casei com 19 anos e meu marido (Cyro Gonçalves Dias) nunca quis que eu trabalhasse.


Eu morava na Rua Mario Carpenter e no mesmo andar morava o casal presidente da Associação Anjo da Guarda. Meu filho chorava muito quando nasceu, então, esse casal foi lá em casa dar um passe nele. Desse dia em diante, ele não chorou mais. Trabalhei no Anjo da Guarda muitos anos, organizava os eventos beneficentes.


Durante 16 anos abri as festividades pelo aniversário de Santos, sem precisar de nada escrito. Acho que gostavam da minha oratória. Meus poemas e escritos estão todos guardados no arquivo da Academia Santista de Letras. Eu sei que tem gente que, quando quer pesquisar alguma coisa do passado, vai lá atrás dos meus textos.


Conheci muita gente do bem: Zulmira Campos, que foi minha professora, Ariosto Guimarães, um grande advogado, Cleóbulo Amazonas Duarte... O filho dele, inclusive, me deu um poema certa vez, do José Soares Cardoso, que eu falo todas as noites. Serve como oração, na hora de dormir.Eu publiquei na Tribuna há muitos anos, de tão lindo que é esse poema. É minha oração de todas as noites.


Quando eu tinha 2 anos, minha mãe levou um tombo e mandaram chamar o médico. Veio Martins Fontes para atendê-la. Minha mãe conta que, quando ele me viu, achou meus olhos azuis muito bonitos, e fez um poema pra mim, ali na hora. Ele escreveu no verso do receituário. A receita ficou na farmácia.


Martins Fontes era muito amigo do meu pai. Sempre adorei os poemas dele.


Ele foi o melhor poeta desta Cidade, a despeito de termos também o Vicente de Carvalho. Martins Fontes morou muitos anos onde hoje é o estacionamento ao lado do Coliseu.


Eu não me considero saudosista, mas gosto de lembrar do passado. Quando me lembro como era nossa vida no casarão branco... puxa... era tudo muito mais tranquilo.


À noite, as moças iam andando até o Gonzaga tomar um refresco.


Minha mãe ficava no casarão sozinha quando todos saíam. Os janelões abertos, as portas abertas... nunca aconteceu nada.


A crise do café atingiu em cheio o comércio cafeeiro. Meu pai tinha sociedade na firma Rodrigues Alves & Cia. O pessoal foi perdendo tudo. Meu pai não queria ficar devendo, e então vendeu o que tinha para pagar as dívidas.


Nós ainda morávamos no casarão branco quando isso aconteceu. Ficamos só com um funcionário, e eu encerava aquilo tudo de joelho no chão. Não tenho vergonha nenhuma de dizer isso. Sempre enfrentei tudo que foi possível. Nunca me revoltei.


Antigamente, Santos tinha uma vida cultural mais intensa, mais rica. Basta dizer que aqui tinha a Sociedade Cultura Artística, que era presidida pela Zezé Lara, e o Centro de Expansão Cultural, que chegou a ser presidido pelo meu marido.


O Coliseu ficava lotado. Não era nada pago. Até Guiomar Novaes e Margarida Lopes de Almeida vieram aqui.


Eu acho que realizei tudo aquilo que sonhei pra mim. É claro que a gente sempre quer ver a família toda bem, mas não me apego muito às lembranças do passado. Isso faz mal pra gente.


Eu dou razão que as coisas vão perdendo o sentido. O progresso afasta até a cultura. Eu convivi bastante com a arte, com a cultura. Tive esse privilégio.


Eu sou espírita há muitos anos. O espiritismo ajuda a enfrentar melhor a morte. Ele ajuda a gente a entender melhor as razões dos nossos sofrimentos.


Acordo, tomo café e leio diariamente três jornais. Ando só com andador, e só saio quando precisa mesmo. Minha rotina hoje é muito simples.


Eu tenho uma força interior muito grande, talvez pelo princípio espírita e religioso que tenho....mas não fosse isso, não sei como enfrentaria todas as perdas que já tive na vida: meus irmãos, meu filho Ciro...


Nunca me preocupei com a idade, em dizer quantos anos tenho. Também nunca tive medo de morrer. Nunca imaginei chegar aos 100 anos e agora está tão perto.....serei a única que chegou lá entre 12 irmãos.


Meus amigos todos já se foram... acho que estou atrasada na convocação (risos). Rasgaram a minha carteirinha pra ir lá pra cima (mais risos).


Sempre enfrentei as coisas como era preciso. Nunca esmoreci. Nunca me deixei abater.
No meu aniversário, irei à missa, mas não estou programando nenhuma festa. Fazer festa exige convidar muita gente, e não quero correr o risco de esquecer alguém.


Se eu pudesse dar um recado às pessoas, diria:


- Estejam sempre em paz com sua consciência. A melhor coisa é a consciência tranquila que a gente leva pela vida.


Para os mais velhos, o recado é simples: precisamos nos conformar com a chegada da idade, mas sem abandonar o que sempre fizemos. Se eu não tenho mais a mesma mobilidade, eu continuo lendo, me atualizando. Não é porque a pessoa envelheceu que vai abandonar seus ideais e seus sonhos. Sempre que precisam de mim, para um conselho ou coisa assim, eu estou disponível. Minha experiência de vida pode servir para os mais jovens. Sou privilegiada por Deus por chegar a essa idade e consciente de quem sou."


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