Tia Beth de todos: Elizabeth Rovai está há 42 anos na Casa Vó Benedita

Entidade abriga crianças e adolescentes e precisa muito da sua ajuda

Por: Thaís Lyra  -  11/11/19  -  18:20
Atualizado em 04/05/23 - 12:22
Elizabeth Rovai de França, a Tia Beth, é presidente da Casa Vó Benedita
Elizabeth Rovai de França, a Tia Beth, é presidente da Casa Vó Benedita   Foto: Alexsander Ferraz/ AT

“Agora só falta um celular para a Nathália. Sabe como é adolescente, né? Não vive sem internet. Já pedi para o meu grupo de voluntários e logo a gente deve conseguir um”, comemora a sorridente Tia Beth enquanto três jovens, no sofá, mexem em seus aparelhos. Tia Beth é a forma carinhosa como é chamada Elizabeth Rovai de França, 67 anos, presidente da Casa Vó Benedita, abrigo para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade que funciona na Zona Noroeste, em Santos.


A preocupação com o celular para garantir às meninas uma vida o mais próximo da normalidade é só mais uma entre tantas da diretora-presidente. Sua chegada ao local aconteceu mais ou menos nesta época, há 42 anos, quando a então funcionária da Cosipa se juntou aos amigos de trabalho para fazer sacolinhas de Natal.


Desde então, muita coisa aconteceu na vida dela e das centenas de crianças que passaram por lá. Só uma coisa não mudou: o amor de Beth pelo seu trabalho e pelas crianças. “O dia que não venho para o abrigo parece que está faltando alguma coisa”, conta ela, nascida em Santos, no Monte Serrat. Na entrevista a seguir, ela conta um pouco dessa história e fala da importância do trabalho voluntário.


INÍCIO Como você chegou à Casa da Vó Benedita?


Trabalhava na Cosipa e, junto com os amigos da sala, nos reunimos para fazer sacolinhas de Natal e ajudar uma senhora chamada Benedita Oliveira, que na época morava no Centro de Santos e cuidava de crianças que eram deixadas em sua residência. Como alguns pais não voltavam, vó Benedita ficava com elas. A gente se encantou pela vó. Após a morte de Benedita, em 1984, acabei me envolvendo mais.


As crianças vêm para cá por qual motivo?


Vítimas de maus-tratos, abandono, negligência... Qualquer coisa que coloque a criança em risco. A drogadição dos pais, hoje em dia, é a maior causa de abrigamento. Atendemos crianças de 0 a 17 anos. Atualmente, estamos com vários adolescentes.


Por isso a preocupação com o celular?


Aqui, tentamos fazer com que eles se sintam o mais próximo do lar. E o celular faz parte da vida de todo jovem, não tem jeito. É um trabalho diário.Aqui tentamos ter vida normal: eles estão na rede escolar do Município, vão no médico, dentista...


Qual o tempo médio que dura o abrigamento?


A média são seis meses.Mas cada caso é um caso. Às vezes fica mais tempo. Por exemplo, a mãe vai para uma clínica se tratar e não tem ninguém para ficar com a criança. Eles ficam até que a mãe saia, consiga sair, se recuperar, mais um tempo para se organizar. Até um ano, às vezes mais.


Como a casa sobrevive?


Temos um convênio com a Prefeitura, que precisamos bastante, mas é insuficiente. Também recolhemos dinheiro com o telemarketing mas, por conta da crise, deu uma boa caída. Fazemos eventos, participamos da Festa Inverno, festas que o Fundo Social de Solidariedade proporciona. Cuidamos de um bazar na Av. Conselheiro Nébias, 126, Centro, que ajuda muito.


E o dinheiro é suficiente?


No começo do mês até que dá. O problema é depois do dia 20. Os gastos são muito altos.


São cinco refeições de domingo a domingo. Temos bebês quetomam leite, sopas e 39 funcionários que trabalhamem três turnos. E não temos só esta casa. Temos uma segunda, na Rua Uruguai, 11, na Vila Nova, onde funciona a Creche Noturna que atende 60 crianças. Começamos a fazer este trabalho em 2016, porque, na época, 90% dascrianças que chegavam ao abrigo vinham do Centro da Cidade.Lá desenvolvemos um projeto chamado Reconstruindo a Família, com cursos para que as pessoas daquela área possam se organizar. Das 18h30 às 23h30, ficamoscom as crianças para que a mãepossa trabalhar ou estudar. E administramos uma terceira unidade, que é o mesmo local do bazar, onde temos uma escola de música e informática.


Quantas crianças são atendidas no abrigo?


Temos 20. Sendo cinco na fila da adoção.


TRANSFORMAÇÃO Em 42 anos quais foram as principais mudanças?


Quando cheguei, já chegamos a ter 75 crianças. O jeito de trabalhar era diferente. Antigamente, o Conselho Tutelar recebia a denúncia, retirava a criança da família e abrigava. Agora, com a normativa de abrigo, o número para abrigar crianças é menor. E outra coisa: assim que o conselheiro fica sabendo de algum caso, ele averigua e trabalha a família primeiro. Esgotou, não teve jeito, é procurado um familiar extenso (tio, avó etc) para pegar a guarda. Ela só vem para o abrigo quando não tem ninguém da família que possa se responsabilizar quando ela estáem risco. No caso da família não conseguir se reorganizar – eexiste uma equipe fazendo esse acompanhamento – e nenhum parente possa ficar com a guarda, o juiz determina a família substituta.


Os motivos que trazem as crianças para o abrigo também mudaram?


Com certeza. O próprio comportamento era muito diferente. Eles trazem uma vivência muitas vezes sofrida e copiam exemplos do que viam em casa. Sentimos dificuldade até para implantar regras, comportamento e tudo mais. Houve mudança bem grande.


Por que acha que isso aconteceu?


São vários motivos. Mas acredito que a droga na família é o maior dos problemas dos dias atuais. Antigamente, os casos eram mais de negligência, maus-tratos, surras. Hoje é o abandono mesmo, largam na rua para se drogar.


SONHO Acredita que um dia será possível não existir mais abrigos?


Esse seria meu sonho. Que todas as crianças tivessem uma família para oferecer moral, bons costumes e amor. Não se abriga ninguém por pobreza. Por isso trabalhamos exaustivamente a família para receber essa criança de volta. A gente acredita nisso: que a criança tem que ficar com a família biológica. Além de tudo, é um direito da criança. Quando a família biológica não dá certo, tem a outra parte, que é a família que quer adotar uma criança.


Você fala muito nas mães. Onde entra o pai nessas histórias?


Normalmente, a mãe é a chefe de família hoje. Se você vai na região do Centro ou Paquetá, vai ver que a maioria é a mãe que cuida. E quem perde a guarda no abrigo é a mãe. Muitas crianças nem sabem quem é o pai.


Dinheiro, doações, comprar no bazar, voluntariado... Quais são os outros projetos que a casa possui para quem quer ajudar a Casa Vó Benedita?


Os principais são o Apadrinhamento Afetivo, que você precisa fazer uma ficha, frequentar e conhecer a entidade. Primeiro tem que ser voluntário para passar e ter confiança na casa. Futuramente, apadrinha algum dos meninos. Pode ser com um reforço escolar, um tênis, levar para passar férias, um passeio. O Família Adotando Família é outro e é voltado para a criança que já saiu do abrigo e volta para a casa. Aí o voluntário vai dar um suporte para a família, sempre com a nossa intermediação. Pode ser uma cesta básica, um uniforme da escola... Até para evitar que a criança volte para o abrigo.


Existem outros?


Sim, o Fazendo Minha História é bem bacana porque o voluntário e a criança criam um vínculo muito forte, pois ele chega aos poucos e vai montando um álbum. Quando ela sai, leva esse livro para continuar história. O voluntário pode ajudar levar a buscar para escola, ajudar quando fazemos passeio, no bazar, na Creche Noturna... Não falta coisa para fazer. Hoje, temos 50 voluntários, incluindo médicos e dentistas.


Dá tempo de se inscrever para ficar com alguma criança nas festas de fim de ano?


Voluntários que querem fazer esse trabalho têm que vir logo. Porque, para levar para casa, a assistente social precisa fazer uma visita domiciliar para ver como é a vivência daquela família. Depois, mandar para o juiz informações e só depois ele autoriza.


DOAÇÃO Qual é a importância de ser voluntário?


É muito bom. E não só na Vó Benedita. Se você pode ir em alguma entidade, vá. É bom para o lugar, que precisa, e muito melhor para a pessoa, porque ela vai para a casa com um energia dobrada.


Eu sou muito suspeita para falar porque eu venho todos os dias para cá. Aqui, você chora quando as crianças vão embora, fica feliz e é uma mistura de sentimentos que não sei explicar. Eu sei que é gratificante. Só não venho no domingo porque é o dia que eu almoço em casa com os meus três filhos e meu marido.


No fim do ano as pessoas costumam ajudar mais?


É verdade. Acho importante, claro. Mas eu convido quem está pensando em nos ajudar para que, primeiramente, venha nos conhecer. Porque é muito legal ajudar e saber onde está ajudando. Seja aqui, na Creche Noturna, no bazar...


Você consegue não se envolver com as histórias?


Impossível, não tem jeito. Quando a criança retorna para a família biológica, a gente continua com vínculo porque muitas ficam em contato. E a equipe técnica faz um acompanhamento por seis mesese, se precisar, mais seis meses. Não se corta o vínculo do dia para a noite.


Imaginava fazer isso?


Nunca pensei. Sempre gostei de trabalhar com criança, mas jamais imaginei ficar tanto tempo na casa. Sei que estou aqui há 42 anos.Saí da Cosipa em 1987 e, quandoa Casa veio para Zona Noroeste,em 1992, comecei na diretoria.Uma coisa muito bacana é que todos os amigos que fizeramaquela festa, há 42 anos, continuam ajudando. É uma sensação muito boa. Fizemos um encontro de gerações de crianças que jásaíram daqui e você percebeque o trabalho vale a pena e que estamos no caminho certo.


O telefone da Casa Vó Benedita é 3299-5415.


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