Santista faz parte do seleto time de brasileiras que atuam como pilotas em companhias aéreas

Thais Ferreira fala do dia a dia nas alturas e do impacto da pandemia na aviação civil

Por: Stevens Standke  -  07/03/21  -  11:45
Atualizado em 19/04/21 - 17:13
 Santista de 38 anos conta como é a vida nas alturas
Santista de 38 anos conta como é a vida nas alturas   Foto: Foto Arquivo Pessoal

Como cresceu em uma família de pilotos de avião, Thais Ferreira descobriu ainda pequena a sua paixão por voar. Mas, antes de realizar o sonho de pilotar uma aeronave, trabalhou por nove anos como comissária de bordo na Gol e, na própria companhia aérea, fez o processo de transição para a função de copilota – que desempenha há cinco anos.


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Na entrevista a seguir, a santista de 38 anos conta como é a vida nas alturas e detalha o impacto da pandemia nos aeroportos. Na véspera do Dia Internacional da Mulher, mostra também uma triste realidade: ainda hoje, a aviação civil continua sendo um setor dominado basicamente por homens, o que faz com que as profissionais que atuam como comandantes ou copilotas, em alguns casos, sejam alvos de preconceito.


MINORIA O universo da aviação civil é tradicionalmente masculino. Essa realidade, por acaso, vem mudando?


Ela está mudando, sim. Mas, mesmo com a quantidade de mulheres pilotas aumentando aos poucos, a aviação civil ainda é muito masculina. Geralmente, duas pessoas pilotam um avião: o comandante e o copiloto. Na Gol, para você ter uma ideia, há hoje 816 comandantes, dos quais dez são mulheres, e 802 copilotos, sendo 44 do sexo feminino. Comparado com quando comecei a pilotar, há cinco anos, essa proporção melhorou, pois ela era menor ainda.


Já sofreu algum tipo de preconceito, por ser mulher?


Comigo nunca aconteceu nada nesse sentido. Todos os pilotos, o resto da equipe de bordo e os passageiros são sempre bem educados. Já ouvi relatos de comandantes que implicam com copilotas ou que fazem brincadeiras fora de hora, só que, quando você começa a analisar a situação, vê que, às vezes, não é preconceito por se tratar de uma mulher, pois aquele comandante teve ou tem problemas com outros tripulantes, inclusive homens. Algo que também já ocorreu foi o passageiro se recusar a embarcar, porque o avião ia ser pilotado por uma mulher. Mas em geral, quando os passageiros – principalmente as crianças – se dão conta de que o voo será feito por uma pilota, eles ficam encantados, pedem para visitar a cabine. E se acontece de serem duas mulheres (comandante e copilota), tem vez que forma até fila de passageiros querendo tirar foto com a gente.


PARCERIA Como é a relação entre comandante e copiloto?


Um auxilia o outro para que não haja erros na condução da aeronave. Só que o comandante é quem responde pelo voo, ele que tem a palavra final. Hoje em dia, os comandantes são bem mais acessíveis. Antigamente, existia mais o que chamamos de power distance, ou seja, o comandante fala algo e todo mundo aceita, sem hesitar. Isso anda diferente de um tempo para cá. Os comandantes escutam mais os colegas, eles permitem que a gente dê a nossa opinião.


Pretende se tornar uma comandante?


Eu tenho essa vontade. Normalmente, dizemos que não existe carreira de copiloto. Todo mundo, no fundo, almeja o cargo de comandante. Mas, para alguém assumir essa posição, vai depender muito da demanda, de passar pelo treinamento e ser aprovado nas provas específicas.


  Foto: Foto Arquivo Pessoal

TURBULÊNCIA A maioria dos voos é realmente feita em piloto automático?


Sim. O comandante e o copiloto apenas costumam fazer na mão a decolagem e o pouso. No resto do percurso, geralmente ficamos no piloto automático e vamos monitorando a aeronave e realizando os ajustes necessários. Até porque o avião, a 40 mil pés de altura, fica bem sensível. Qualquer movimento um pouco mais brusco, a pessoa que está sentada lá no fundo do corredor sente bastante. O piloto automático, portanto, torna o voo mais confortável para os passageiros.


Já teve problemas enquanto pilotava?


Houve uma vez em que o passageiro se sentiu mal a bordo, mas os comissários conseguiram auxiliá-lo. Quanto a turbulências, já peguei algumas mais pesadas, só que acabei me acostumando com elas. Antes de decolar, a gente costuma fazer um briefing do voo com a equipe de bordo e, com base nas informações mostradas pelo radar, temos como saber se vamos pegar alguma turbulência pelo caminho. Procuramos amenizar esse tipo de situação de todas as formas possíveis, reduzindo a velocidade, desviando quando dá... Tudo é bastante planejado.


Mesmo que a tecnologia esteja bem avançada, há chance de alguma turbulência não ser detectada pelo radar?


Normalmente os equipamentos não pegam a chamada turbulência de céu claro. E detalhe: ela pode acontecer a qualquer instante. Eu já passei por algumas, mas foi tranquilo. É por isso que pedimos para que os passageiros, mesmo quando estão sentados, continuem usando o cinto de segurança.


CORONAVÍRUS A dinâmica dos voos mudou muito com a pandemia?


Bastante! Diversos procedimentos foram incorporados no check-in e a bordo. Falando especificamente do que diz respeito ao comandante e ao copiloto, nós, antes da pandemia, assim que chegávamos ao aeroporto, nos dirigíamos ao escritório da companhia, para fazer o briefing do voo com a tripulação. Lá, ainda tínhamos contato com todas as outras equipes que estavam escaladas para o dia. Com a pandemia, fomos autorizados a ir direto para o avião e fazer o briefing dentro da aeronave. Sem contar que usamos máscara o tempo inteiro.


A média diária de voos também caiu bem.


É verdade. Antes da pandemia, a Gol fazia uma média de 800 voos por dia. Aí, quando a quarentena começou no País, passamos a ter cerca de 50 partidas diárias e esse total foi subindo mês a mês, até que, em dezembro, período normalmente de alta temporada, estávamos com aproximadamente 600 voos por dia. Mas acabei tendo de entrar de licença, porque descobri que estava grávida (Thais se encontra no quinto mês de gestação; ela vai ser mãe pela primeira vez). O procedimento padrão é que a gente pare de pilotar assim que tem a confirmação da gravidez. (De acordo com a Gol, no momento, são realizadas, em média, 380 decolagens por dia).


Sente falta de pilotar?


Estou com muita saudade de voar. Sou apaixonada pelo que faço, a sensação de pilotar uma aeronave é algo que não tem preço. Quando a gente está lá em cima e vê as cidades todas pequenininhas, entende o quanto os nossos problemas são mínimos. Nessa hora, parece até que eles desaparecem ou que são resolvidos.


  Foto: Foto Arquivo Pessoal

TRANSIÇÃO O que despertou essa paixão pela aviação?


Venho de uma família de aviadores. Meu pai e meu irmão também são pilotos. Portanto, cresci nesse meio. Lembro que, quando eu tinha 12 anos, meu pai me levou junto na cabine, durante um voo. A família sempre apoiou essa minha vontade de fazer carreira na aviação. O meu pai só pediu para que, antes de entrar na área, eu cursasse uma faculdade. Assim que peguei o diploma de Propaganda e Marketing, fui atrás do meu sonho. Primeiro, me tornei comissária de bordo, função que exerci por nove anos. Na sequência, fiz os cursos de piloto privado e comercial.


Quanto tempo leva para se graduar?


Se você tiver dinheiro e tempo, consegue concluir tudo em dois anos. O que custa mais caro são as aulas práticas. A parte teórica, hoje, já pode ser feita totalmente on-line. Quem deseja se tornar piloto tem as seguintes opções: tirar o diploma em uma das escolas homologadas ao redor do País ou, então, partir para uma formação de nível superior – a faculdade de Aviação Civil ou a de Ciências Aeronáuticas. De qualquer maneira, a pessoa terá de passar pela banca da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). Também é preciso ter noção de que o piloto deve estar sempre estudando e se atualizando. A cada seis meses, somos avaliados, para podermos continuar voando.


Geralmente, você faz mais voos dentro ou fora do Brasil?


Como tenho algo que nem todo mundo tem – que é a carteira específica para poder voar no Santos Dumont (é necessária uma habilitação especial para esse aeroporto carioca, pois a sua pista é menor do que o habitual) –, eu faço mais a ponte aérea Rio-São Paulo ou os voos que partem do Santos Dumont rumo a Salvador, Manaus etc. Mas já fiz voos internacionais, sim, por exemplo para Punta Cana (República Dominicana), Buenos Aires (Argentina), Montevidéu (Uruguai) e Santiago (Chile). Em termos técnicos, não muda muita coisa: a duração do voo (que, dependendo do destino, é igual a ir de uma região para outra no Brasil); os recados a bordo devem ser dados sempre em inglês e é necessário checar eventuais diferenças na legislação local.


E como é a sua rotina?


Comandantes, copilotos e comissários de bordo trabalham com base em uma escala. A jornada máxima é de 11 horas por dia e, a cada mês, temos direito, em média, a 15 folgas. Antes de sair de licença, normalmente eu voava dois ou três dias seguidos, para aí folgar. E fazia entre duas e cinco decolagens por dia. Algumas vezes, precisava pernoitar na cidade aonde estava.


Já teve a chance de dividir a cabine com o seu pai ou com o seu irmão?


Não, porque meu pai, que hoje está aposentado, era piloto da Latam. E meu irmão também trabalha lá. Mas já tive a oportunidade de ter pessoas da família como passageiros no avião que eu estava pilotando. Duas dessas situações foram bem especiais: quando levei o meu pai para Córdoba (Argentina) e a minha mãe para Florianópolis (Santa Catarina).


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