Quem canta seus males espanta! Histórias de quem soltou a voz e driblou a tristeza

As aulas on-line estão fazendo sucesso durante a pandemia

Por: Por Alcione Herzog  -  07/02/21  -  12:15
Bianca é professora de canto e teve que se reiventar
Bianca é professora de canto e teve que se reiventar   Foto: Vanessa Rodrigues

Na música Sangrando, Gonzaguinha traduz o terapêutico ato de cantar: “Quando eu soltar a minha voz,por favor, entenda que palavrapor palavra eis uma pessoa se entregando”. Esse verso carregado de emoção ilustra muito bem o que especialistas da voz e da psique humana explicam sobre o que acontece quando cantamos.


A cada nota musical emitida pelas cordas vocais colocamos um pouco de nossas emoções para fora, embalados pela melodia e pelo significado da letra interpretada.As cordas vibram e nós também vibramos, acessando sentimentos represados ou negligenciados.


Desde que a pandemia transformou radicalmente o cotidiano coletivo, as angústias, alegrias, tensões, o amor eoutros sentimentos passaram a ressoar com mais frequêncianas residências e nas escolasde música, graças à mediaçãodas plataformas digitais de comunicação e ensino.


Justamente por conta da necessidade de manter o distanciamento físico, as aulas on-line de canto se multiplicaram, unindo por meio da músicapessoas até mesmo de continentes diferentes. Gente que, ao soltar a voz, se reconectou consigo mesmo, fez amigos e encontrou um jeitode aliviar os medos que a crise sanitária desencadeou.


Imagine um coral com 800 vozes vindas de todas as partes do Brasile de dezenas de países diferentes?A pandemia e o empenho do maestro Gabriel Machado tornaram isso possível. Via internet, ele promove encontros on-linedentro do Projeto Oficina Nacional de Canto Coral.


Tudo começou em 2019, quando o maestro voltou de um mestrado em regência de coral nos Estados Unidos. Depois de especializações realizadas em vários outros países, como Romênia e Japão, Machado percebeuque a educação musical está maispresenteno exterior do que no Brasil. O motivo? Poucas oportunidades para as pessoas aprenderem. “A vontade não falta no brasileiro. Mas lá fora há mais incentivos para orquestras, corais e o ensino musical nas escolas. Resolvi fazer algoem relação a isso”.


Regência digital


Nasceram, então, as oficinas de canto coral. No início, elas ocorriam de forma presencial,em Araucária, no Paraná. Com a pandemia, o projeto passou por adaptações e as aulas passarama ser virtuais. A cada chamadapara inscrições, o número de interessados surpreendia cada vez mais a equipe. No último convite, em janeiro, mais de 10 mil pessoas de 22 países se cadastraram.


As aulas são gratuitas e nãoé preciso ter técnica alguma.Depois de dicas e orientações, iniciantes e profissionais do canto são desafiados a gravar áudioscom trechos de canções, cujas bases e arranjos são refeitos por Gabriel Machado, de forma a permitir que todos possam cantar.


A regência digital se encarrega de unir todas as vozes num só arquivo de vídeo e com múltiplos rostos.O resultado é surpreendente. Além da qualidade artística, a belezada iniciativa é evidenciada pelos depoimentos dos participantes e dos ouvintes. “Recebo histórias emocionantes. As pessoas relatam o poder da música em ajudá-lasa superar momentos difíceis”, comenta Machado.


Ao ler o lema do projeto –Por mais canto em todo o canto –,o engenheiro agrônomo João Luiz CiriloWendlerencontrou o que buscava. O santista conta que sempre gostou de coral e que nos últimos meses sentiu a necessidade de fazer algo que pudesse ajudá-loa aliviar a tensão e encararo clima de apreensão.


Para ele, é gratificante ver pessoas de idades, históriase origens tão diferentes compartilhando os ensinamentos. “Do cantor de chuveiro ao cantor profissional, todos ganham um alimento para a alma, uma maneira de ficar alegre e mudar a chave da mente, deixando um pouco de lado as preocupações com a pandemia”.


Wendleracredita que todoser humano tem a necessidadede se expressar através da artepara encarar melhor a realidade.A psicóloga, cantora e musicistaSuzanyBrandão Almeida concorda com a tese. Ela criou o projetoCantarterapia, que alia saúde mental à música e resgata um benefício inato à prática vocal:a respiração. É mais simplesdo que parece. SegundoSuzany, todos nós nascemos sabendo respirar perfeitamente, mas,com o tempo, desaprendemos.


Com a tensão do dia a dia, usamos muito pouco da nossa capacidade respiratória e cerca de um terçodo pulmão. Isso acontece porque passamos a jogar toda a tensãopara a parte torácica. “O que maisa gente está precisando agoraé respirar. Quem não ficou meio apavorado nessa pandemia? Quando cantamos, começamosa respirar corretamente. Volta aquela respiração de quando éramos bebês. Isso é extremamente relaxante”, observaSuzany.


Resgatar, ainda que intuitivamente, a nossa capacidade respiratória é um dos benefíciosdo cantar, mas não o único.“Ao cantarmos”, dizSuzany, “trabalhamos os músculos intercostais, que revestem a costela, e também o diafragma, músculo extremamente importante, que atravessa o nosso abdômen.


Também são trabalhados o que chamamos de ressonadores do nosso corpo: seios da face, boca, nariz e garganta. Quando usamoso potencial da caixa de ressonância do corpo, inclusive a caixa craniana, obtemos bem-estar. A ressonância massageia o cérebro”.


Yogise budistas sempre souberam que o ar, ao passar por esses ressonadores do corpo, provoca o relaxamento e o foco necessário para a meditação.Por isso, eles entoam o som do OM. “É um processo fisiológico mesmo, além de psíquico e espiritual”, acrescentaSuzanyAlmeida.


No ano passado, o projeto atendeu virtualmente muito mais pessoas do que nos períodos anteriores. Bom sinal percebido também pela cantora lírica e professora de canto Bianca Ribeiro, que teve de se reinventar para ministrar muito mais aulas deforma virtual. E o movimentode novos alunos aumentou.“Teve uma onda grande dejulho até outubro de pessoas interessadas em extravasar as tensões cantando, sem objetivo profissional. São alunos que estavam muito dentro de casae que, agora, usam essemomento para mudar a rotinae descasar a cabeça”.


Timidez na mira


Interpretar a música é importante também para vencer a timidez.É uma das propostas do Sarau Online, da escolaBlackbird,onde Bianca atua. A plateiavirtual reage positivamentee isso aumenta bastante a segurança. Por sua vez, o estímulo para continuar a práticagera o aperfeiçoamento e, consequentemente, aindamais confiança.


“Tenho umaaluna que fez questão de relatar numa cartinha o quanto as aulas ajudaram a passar por alguns momentos pessoais difíceisna pandemia. Nós, professores, ficamos muito felizes”.


Cantora e professora de canto, Carla Mariani também sentiumaior procura de interessadosem canto. Idealizadora do Instituto da Voz Carla Mariani, ela atende remotamente pessoas de diferentes cidades do País. As aulas são individuais e ficam gravadaspara que o aluno tenha acessoàs explicações e orientações sempre que for estudar.


Há um serviço on-line para tirardúvidas e os exercícios são personalizados, de acordo comos timbres de voz, perfil de repertório e objetivo do estudante.


“Tenho pessoas no curso que vieram após o isolamento para se distrair e acabaram encontrando uma paixão. Algumas passaram a encarar como uma possibilidadede profissão”, comemora Carla.


Nas aulas, por alguns minutos,as pessoas esquecem os seus problemas pessoais e os dramas do mundo. “Os alunos relatam que se sentem mais motivados. As pessoas passam a vida inteira achandoque não são capazes e, quando conseguem acertar, vibram muito”.


Nelson Martins é um dos estudantes que buscaram oInstituto da Voz para driblaros percalços emocionais decorrentes da crise sanitária. “Sempre tive uma proximidadecom arte, mas nunca me senticapaz de cantar. Em abril, eu decidi, sem nenhuma pretensão, postar nas redes sociais alguns vídeos meus cantando”.


A ideia do jovem, morador de Barueri, era acabar com os bloqueios internos sempre que tentava expor sua relação coma música. “Eu só cantava escondido, dentro do meu quarto. Agora,vejo na prática que expressar-se artisticamente é uma forma de lidar melhor com a realidade. Sou levado pela música, como num transe.Isso me faz muito bem e me transporta para um outro patamar”.


O que acontece com Nelson Martins, segundo a psicóloga e cantoraSuzanyAlmeida, é mais comum do que se imagina. Especialista em psicoterapia cognitiva comportamental, ela ressalta que comportamentos mudam pensamentos e sentimentos em uma determinada situaçãode conflito. “Na terapia, a gente propõe comportamentos novos. Cantar pode ser um deles,assim como tocar um instrumento ou dançar, por exemplo”.


Os exercícios de técnica vocal, chamados vocalizes, fazem as pessoas conhecerem a própria voz e perceberem como podem ter uma extensão maior do que achavam que eram capazes. “Isso gera segurança para outras áreas da vida também”.


Os benefícios são variados,mas é preciso entender que quadros reais de depressão e outros transtornos psíquicos não se resolvem de forma simplista, como propõe o ditado popular “quem canta seus males espanta”.


É importante frisar que aterapia através do canto, chamada decantoterapia, é diferente deuma aula convencional de coralou canto. Quem faz o alerta é a musicoterapeuta especializadaemcantoterapiaJulianaBertelliBertoncel. “A depressão éuma questão de saúde mental. Precisa ser tratada. Para quemtem um transtorno, cantar ajuda, mas não trata a doença”.


O mesmo se aplica a uma conversa com amigos. É boa para desabafar, mas não se comparaao atendimento com um psicólogo. “As ferramentas – canto ou conversa – podem até ser as mesmas, porém é essencial uma condução especializada em casode quadros depressivos”, alerta.


Segundo Juliana, muitas pessoas passaram a vida distante delas mesmas. Num movimento de fuga e atendendo expectativas da família, do chefe e da sociedade, essas pessoas deixam de entrar em contato com o que é importante para elas. “Com a pandemia, muitos viram a morte de frente, através de conhecidos que chegaram a falecer ou diante da ameaça iminente de contraírem a covid-19. Nessa hora, as pessoas reavaliam a vida e perguntam: ‘Se eu morrer amanhã, a vida terá valido a pena? Esse movimento de buscar o que faz sentido para si tem aumentado”.


A musicoterapeuta diz que a música, em especial acantoterapia, trabalha com o não verbal e ajudaa trazer à tona emoções difíceisde serem expressadas de forma tradicional. “Muitas vezes, é uma dor tão profunda que a gente não consegue entrar em contato no campo teórico. Com esse tipode terapia, dá para acessar e expressar dor, tristeza, medoou qualquer outra emoção que angustia”.


A prática é importante porquesó se pode curar aquilo que nos permitimos entrar em contato. “Muitas pessoas, principalmente homens, ficam presas na raiva,que é um mecanismo de proteção usado para evitar o contato com a emoção. A partir do momento em que nos permitimos percorrer esse caminho, começa o processo de cura, ainda que não tenhamos consciência do tamanho da dor”.


Além de conversar com os pacientes, Juliana propõe exercícios sonoros vocais. Muitos choram nas sessões, mas trazem as dores à tona e conseguem elaborá-las. “Eles entram em contato com aquilo que negam, principalmente os pacientes com padrão maior de resistência para aceitar as verdades internas”. Uma vantagem dacantoterapiaé que o acesso às emoções contidas ocorre ao mesmo tempo em que elas vão sendo dissolvidas. Isso porque, entre a música e a dor, o cérebro escolhe ficar com a música.


A especialista lembra que o caminho neurológico da informação do corpo para o cérebro é o mesmo, tanto da dor quanto da expressão musical. “O som ameniza a dor.É um analgésico. Não é à toa que gritamos quando damos uma topada com o dedinho. Ao mesmo tempo em que traz à tona o sentimento,o som já dá acolhimento. Emitir sons promove a transmutação daquela dor, porque o padrão vibracional é um movimento. Tira a pessoa de um estado e leva a outro”.


Para quem quer começar a soltar a voz, uma oportunidade é o Coral da Universidade Metropolitana de Santos (Unimes), que está com inscrições abertas. As aulas sãoem formato on-line, abertas a jovens e adultos. Os ensaios acontecerão às quartas, às 14 horas, a partir do dia 24. Inscrições pelocarla.marcilio@unimes.br.


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