Projeto social de São Vicente proporciona novas oportunidades a jovem Raquel Milguel

História mostra que projetos de apoio para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade podem mudar vidas

Por: Alcione Herzog  -  28/11/21  -  14:28
Amor e oportunidade
Amor e oportunidade   Foto: Alexsander Ferraz/AT

Quando todas as probabilidades de fracasso nos empurram para o abismo, não tem muito o que escolher: diante do limite da queda livre, é pular de vez num ato de desespero ou firmar os pés no chão para não desequilibrar e, aos poucos, tentar fugir do precipício.


É muito mais justo e eficaz quando a jornada para fora da zona de perigo é amparada por mãos e braços solidários. Assim deveria ser sempre. A recepcionista Raquel Milguel, de 22 anos, por várias vezes encarou a derrota de frente. Porém, ao receber oportunidades, escolheu resistir e vencer obstáculos.


Se estivesse sozinha, como várias crianças em lares desestruturados do Dique Sambaiatuba, em São Vicente, de onde Raquel veio, seria muito mais difícil escapar do pior. “Agradeço grandemente a todas as mulheres que passaram pela minha vida e deixaram um pouco da sua sabedoria, paciência, amor e afeto”.


A jovem se refere às profissionais do abrigo para menores Casa Crescer e Brilhar e às voluntárias do Clube Soroptimista de São Vicente.


Raquel conta que chegou ao lar coletivo aos 12 anos, com o irmão adolescente, expulso de casa por ser gay. Lá teve mãos, braços e os abraços que tanto precisava. Além de dar estrutura e amor, a equipe multidisciplinar acreditou em seu potencial para cumprir a profecia presente no nome da instituição: brilhar. Hoje, a jovem reflete luminosidade através dos olhos cheios de expressividade quando fala de metas e planos. Nos últimos meses, Raquel brilha também por meio de sua história, contada como exemplo para jovens e adultos em vulnerabilidade social e emocional de várias partes do mundo.


Como alguém que até há pouco tempo viveu dias duros de escassez afetiva e pobreza agora ganha fama internacional? Sônia Maria Delsin, da Soroptimist International, organização mundial de voluntárias que oferece a mulheres e meninas acesso à educação e treinamento com foco em autonomia financeira e fortalecimento da autoestima, diz: “Por meio do Programa Sonhe, Realize, o Clube Soroptimista de São Vicente, junto ao Soroptimist International of Americas (SIA), ajudou Raquel a descobrir seus próprios sonhos e talentos”.


Extracurricular

Com 15 anos, Raquel descobriu que tinha diversas habilidades e metas. O próximo passo foi adquirir foco para buscar o caminho almejado, aprendendo várias ferramentas nas aulas do contraturno escolar. O projeto, que já ajudou mais de 50 mil meninas de 14 países, consiste em prestar mentoria e educação para garotas do Ensino Médio com foco no enfrentamento de obstáculos para atingir o sucesso. Entre os possíveis entraves estão a gravidez na adolescência, dificuldades econômicas, violência, uso de drogas e desestruturação familiar.


“Por meio das aulas e atividades extracurriculares, desenvolvemos instrumentos que ajudam as meninas a persistirem nos estudos, a diagnosticar seus anseios e a traçar metas para alcançar seus sonhos. Elas traçam o seu próprio projeto de vida”, explica Sônia.


Compartilhando vivências

Neste ano, jovens de várias nacionalidades que passaram pelas mãos do programa contaram um pouco de suas histórias. Raquel se destacou nos relatos e teve sua trajetória escolhida como símbolo de sucesso nas instâncias internacionais da instituição no dia das Nações Unidas – celebrado em 24 de outubro.


Passados seis anos da mentoria, o sonho da recepcionista continua o mesmo: “Quero me tornar uma mulher independente”. Esse é o objetivo maior. Já os meios para alcançá-lo são vários. Dois deles consistem em seguir na área de Recursos Humanos e, depois, cursar Psicologia. A distância entre o sonho e a realidade está cada vez menor. “Me formei em Gestão em Recursos Humanos em 2020. Através da junção da nota do Enem com o Prouni, consegui 100% de bolsa”, diz Raquel, que foi adotada por um casal homoafetivo e ganhou três irmãos, também adotados.


Antes do Enem, Raquel ainda participou do Programa Jovem Aprendiz da Petrobras, fez curso de auxiliar técnica de Tecnologia da Informação e atuou no RH da petroleira. Portas importantes se abriram para acessos infelizmente inimagináveis para muitos. Até tocar violino na orquestra do Instituto GPA (Pão de Açúcar) Raquel conseguiu. “Quero voltar para a música e ter essa e outras artes como hobbies. São talentos que também cultivo e quero manter para me dar prazer”.


Outra meta é concluir o estudo de inglês até a fluência e, quem sabe, fazer um intercâmbio no exterior.


Perseverança

Garotas como Raquel estão em maior risco de serem deixadas para trás. Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE), 32% das meninas brasileiras deixam o Ensino Médio por situações de abuso, violação de direitos ou pela necessidade de ajudar a família no sustento do lar.

Mas Raquel se recusou a fazer parte desse abismo social e engrossar as trágicas estatísticas. “Não foi fácil minha vida. Não tive pai, nem bom convívio com a minha mãe. Mas, quando morei no abrigo, tentei aproveitar ao máximo as oportunidades que me foram oferecidas. As experiências agregaram sabedoria, força emocional, gentileza, humildade, entre outros valores que fazem parte de quem eu sou hoje”.


A jovem conclui dizendo que não seria possível acreditar nos sonhos sem o auxílio e o suporte emocional de mulheres fortes do programa e do abrigo. Para outras meninas e meninos que estão sem esperança, sem saber como voltar para o rumo seguro, o conselho é não desistir. “A partir do momento em que você nasce como uma criança pobre, negra e do sexo feminino, já há obstáculos. Mas olha só a minha história! Eu não tinha nada. Hoje, me sinto capaz de lutar pelo que quero. É preciso ter apoio, mas também é importante desenvolver força mental para não deixar a baixa autoestima, o pessimismo e o preconceito nos desviarem”.


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