Piora da pandemia se deve a descaso desde fase verde, alerta membro do Comitê de Contingência

Segundo infectologista e epidemiologista Carlos Fortaleza, melhora depende de, junto à vacinação, fazer lockdown

Por: Stevens Standke  -  21/03/21  -  19:04
  Foto: Foto Reprodução YouTube

A constatação do infectologista e epidemiologista Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza,um dos membros do Comitê de Contingência da Covid-19,do Governo do Estado deSão Paulo, não poderia ser mais triste e chocante:a pandemia chegou ao seu pior momento no Brasil não por causa da cepa amazônica edas aglomerações registradas no Natal, no Ano-Novoe no feriado de Carnaval;a situação caótica que vivemos se deve principalmente a parte considerável da população não respeitar há um bom tempoas orientações das autoridades de saúde e banalizar o risco,ao, por exemplo, não utilizar máscara.


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O médico, que também é presidente da Sociedade Paulista de Infectologia e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), ainda afirma que o caminho para vencer a pandemia está em conciliar a vacinaçãocom o lockdown. Segundo ele, mesmo nas projeções mais pessimistas, os casos de covid-19 tendem a diminuir a partir domeio do ano e, com tudo correndo bem, há chances de entrarmosem 2022 sem precisarmosutilizar a máscara, tendo uma vida próxima do normal.


Na entrevista, Fortaleza fala, entre outros assuntos, dos remédios em desenvolvimento para tratar quadros graves de covid-19 e das descobertas relevantes sobre o comportamento do coronavírus.


CAOS Nós já estivemos na fase verde do Plano São Paulo e, hoje, um ano após o início da pandemia, nos encontramos no seu pior momento e numa fase que nem existia no programa. O que pesou mais para chegarmos a esse ponto?


O coronavírus tem surpreendido todos nós. A própria Europa fezum bom controle da pandemia no primeiro momento, mas, quando relaxou, teve a segunda onda da doença. O mundo enfrenta desafio bem difícil, e nós, brasileiros, aparentemente lemos a cartilhade como fazer errado. Nosso presidente, junto com Donald Trump, assumiu uma postura negacionista de destaque mundial. A diferença é que os EUA elegeram outro presidente e saíram do negacionismo. Nós continuamos marchando rumo a uma catástrofe e recusando todas as medidas que podiam desacelerar a pandemia por aqui. No Estado, a população relaxou muito a partir do momento que alguns lugares foram para a fase verde do Plano São Paulo. As pessoas entenderam isso como um sinal verde para fazer tudo o que faziam antes da pandemia. Por causa desse comportamentoda maioria, a situação piorou.


Os feriados e a nova cepanão contribuíram para isso?


O que estamos vivendo agora não se deve à nova variante do coronavírus, nem ao Natal,ao Ano-Novo e ao Carnaval. Chegaríamos a esse caos de qualquer forma. O mais provável é que a nova cepa e as aglomerações nos feriados apenas tenham colaborado para apressar o colapso pelo qual passamos. As pessoas conseguem obedecer medidas drásticas por um curto período, mas têm dificuldade para manter medidas medianas por um longo período. Com o tempo, a população acabou banalizando o risco e fechou os olhos para os números, que significam vidas. Como se isso não bastasse, infelizmente, tivemos líderes e formadores de opinião que ainda estimularam aglomerações. Sem contar as notícias falsasque começaram a circular,sobre tratamentos ineficazes etc.


Acredita que as pessoas que estão sendo vacinadas podem ajudar a reforçar essa banalização do risco?


Isso não está acontecendo no momento, talvez porque quem está sendo vacinado pertence a grupos de alto risco ou grande exposição ao coronavírus. Geralmente o profissional de saúde sabe que o risco não desaparece por completo após se vacinar e não se descuida. O idoso também costuma entender que não deve baixar a guarda. Mas é provável que, quando vacinarmos os jovens sem doenças crônicas, eles intensifiquem a banalizaçãodo risco, pois são os maiores promotores da desobediência civil.


PROJEÇÃO Dá para prever quando deixaremos de usar máscara?


Para que isso aconteça no Brasil, precisaremos ter grande parcela da população vacinada e uma redução expressiva na circulação do coronavírus. Devemos entender que a vacina, individualmente, pode não fornecer 100% de proteção, mas, coletivamente, ela tende a fazer a diferença. Por quê? Quando a gente diz que um imunizante proporciona, por exemplo, 50,3% de proteção, isso significa que, em um grupo de 100 pessoas que adoeceriam, pelo menos metade não terá covid-19. Esse corte na transmissão pode facilmente reverter o processo de crescimento da pandemia. Mesmo as projeções mais pessimistas mostram que, a partir do meio do ano, o número de casos de covid deve cair, desde que a vacinação seja eficaz e os imunizantes cheguem como prometido. Se tudo correr bem, talvez já entremosno ano de 2022 sem precisar usar máscara, com vida perto do normal.


É difícil imaginar isso,ainda mais no momento atual.


Vamos pegar Israel como exemplo, para entender como a situação pode ser revertida. O país teve um período de negacionismo, em que investiu no isolamento vertical – aquele voltado aos idosos. Mas os israelenses perceberam que essa era uma estratégia equivocada e mudaram radicalmente de postura. Daí em diante, o país não só tem vacinado com rapidez como feito, conjuntamente, o lockdown.O caminho para se livrar da covid, portanto, é realizar as duas coisas: imunizar a população e, ao longo do processo, restringir sua circulação.


A Itália, por sua vez, está em meioa uma terceira onda da covid-19.


Porque há muito negacionismo por lá. Mesmo com tudo o que o país já passou durante a pandemia, vários italianos costumam boicotar o distanciamento social.


Logo, as chances de haver terceira onda no Brasil são grandes.


Se não vacinarmos a população a tempo, isso pode ocorrer, sim. As nossas autoridades de saúde demoraram para falar em uma segunda onda no País não porque não reconhecessem que a situação estava grave. É que, enquanto a Europa teve duas ondas bem nítidas – os índices subiram, aí desceram bastante e, em seguida, cresceram de novo –, o Brasil nunca esteve bem. Por aqui, a segunda onda praticamente sobrepôs a primeira.


CEPAS Quantas variantes do coronavírus existem hoje em dia?


Dezenas, no entanto apenas três são variantes epidemiologicamente preocupantes: a britânica, a sul- africana e a amazônica. No Brasil, temos duas cepas: a carioca (P2), que, por um período, foi a principal no Estado de São Paulo e que pouco se difere do coronavírus original; e a amazônica (P1), que, agora, predomina no País. Informações da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e do (Instituto) Butantan mostram que as vacinas em uso por aqui são eficazes contra as duas variantes brasileiras. O imunizante da Pfizer e a Coronavac também protegem das cepas britânica e sul-africana; já a vacina da AstraZeneca/Oxford não tem respondido tão bem à variante sul-africana. Estamos aprendendo tudo em tempo real. É como se diz: temos trocado os pneus com o carro em movimento. No momento, não podemos nos dar ao luxo de escolher qual imunizante tomar. Se foi comprovado que a vacina é suficientemente eficaz, não há motivos para não tomá-la.


A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não está mais exigindo a realização de testes de fase 3 dentro do País para liberaro uso de uma vacina. Isso é ruim?


Devemos ter em mente que qualquer imunizante, para ser liberado no Brasil, ainda precisa passar pelos estudos de fase 3. A diferença é que esses testes não têm mais de ser realizados obrigatoriamente aqui no País. Isso apenas seria um problema se os órgãos regulamentadores dos Estados Unidos e da Europa não fossem confiáveis. Algo que se tem discutido bastante é a necessidade de as agências regulamentadoras do planeta inteiro conversarem e cooperarem mais entre si, para que as avaliações, mundo afora, não precisem começar sempre do zero.


REMÉDIOS O que acha de o Butantan estar investindo na criação de uma vacina brasileira?


É importantíssimo que a gente aposte em tecnologias totalmente nacionais. Nesse momento, pode parecer cômodo importar um imunizante ou montar parque para sua produção no País. Só que, quando a tecnologia é 100% brasileira, a longo prazo tudo fica mais barato e factível. Sem falar que o Brasil não é iniciante na produção de vacinas. Somos o maior fabricante e exportador do mundo de imunizantes para a febre amarela. Tem mais: em 2003, os governos Federal e do Estado de São Paulo firmaram parceria para que a vacina da gripe passasse a ser totalmente feita pelo Butantan. E o Brasil se tornou autossuficiente nesse imunizante. Imagina isso acontecer no caso da covid?


Seria maravilhoso, em todos os sentidos.


Com certeza! O Butantan também está investindo na fabricação de soros anticovid, que podem ajudar a tratar casos graves. Esses estudos se encontram em fase inicial.


Algum remédio já se mostra eficaz para tratar os quadros graves?


Há medicações que têm obtido bons resultados, mas elas são novas, caras e muitas ainda não estão disponíveis no Brasil. O remdesivir, por exemplo, foi aprovado pela Anvisa na semana passada e vai começar a ser comercializado a alto custo. Ele tem demonstrado alguma eficácia em pacientes moderadamente graves que precisam de oxigênio e ainda não estão em ventilação mecânica. Vale repetir: tratamentos precoces com cloroquina, ivermectina ou nitazoxanida não funcionam.


INDÍCIOS Quais são as principais descobertas sobre o comportamento do coronavírus?


Temos indícios de que alguns grupos sanguíneos costumam desenvolver quadros mais graves e de que há também marcadores genéticos nesse sentido. Nós já sabemos que pessoas que se expõem a uma maior quantidade do coronavírus tendem a apresentar quadros mais graves do que quem teve contato com uma quantidade menor do vírus. Outra informação relevante: as pessoas que desenvolvem a covid mais severa geralmente ficam com maior imunidade do que quem teve a doença leve. Fora isso, os casos de reinfecção costumam ser mais suaves do que quando se contrai covid-19 pela primeira vez.


O que orienta para quem começa a apresentar sintomas suspeitos: procurar logo o atendimento médico ou esperar um pouco?


A recomendação inicial de ir ao médico apenas em casos graves se mostrou errada. Por causa disso, muitos quadros acabaram se agravando. Em plena pandemia, devemos sempre dar o benefício da dúvida. Se você suspeita de que está com covid, precisa procurar o atendimento médico para fazer o exame. É bom ficar alerta principalmente em quadros gripais, com perda ou mudança no olfato, dor de garganta, nariz escorrendo e febre. Quem tem rinite alérgica ainda deve se questionar: o meu nariz está escorrendo como o usual ou há alguma coisa de diferente?


Vamos ter que tomar vacina para covid todo ano, assim como acontece no caso da gripe?


Só teremos uma resposta para isso com o tempo. Mas existe, sim, a possibilidade de precisarmos nos revacinar a cada ano, igual fazemos para a gripe. Até porque, quando alguém se cura da covid-19, a sua imunidade natural vai diminuindo com o tempo.


MONITORAMENTO Como é o trabalho no Comitê de Contingência do Governo do Estado de São Paulo?


Nossa equipe mescla profissionais do Estado com os como eu, que não possuem vínculo com o Governo de São Paulo. O comitê é consultivo, ele faz análises e dá recomendações para o governador e suas secretarias. Nas últimas semanas, o João Doria tem colocado em prática a maior parte das nossas orientações, de fechamento progressivo das atividades. Não foi o comitê que elaborou o Plano São Paulo, mas ele trabalha continuamente na recalibragem do programa. No momento, o que não queremos é que volte a acontecer de uma região ir da fase vermelha para a verde e, depois, retornar à fase vermelha. Por isso, as novas exigências para progressão no plano serão ainda mais criteriosas.


O que será preciso para nós deixarmos a fase emergencial?


O comitê está no processo de definição do que será necessário para abrir novamente a fase vermelha no Estado. As pessoas devem entender o seguinte: demora de uma semana a até dez dias para se obter dados que realmente mostrem se as medidas restritivas estão surtindo efeito ou não. Dependendo do que ocorrer até o fim do mês de março, a fase emergencial pode acabar sendo prolongada.


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