No Dia Internacional da Síndrome de Down, histórias como do casal Samuel e Isabela

Eles são independentes, moram juntos e vão se casar este ano, derrubando barreiras e pré-conceitos

Por: Por Alcione Herzog  -  21/03/21  -  13:45
Samuel e Isabela moram juntos e se casam em outubro
Samuel e Isabela moram juntos e se casam em outubro   Foto: André Macedo/divulgação

Humanamente somos todos diferentes e isso é enriquecedor, dizem psicólogos, pedagogos e sociólogos. Já socialmente deveríamos ser todos iguais. Somos? Temos todos, independente de caraterísticas genéticas ou biológicas, condições e oportunidades adequadas às nossas especificidades para desenvolver plenamente nossas diferentes competências e potencialidades? São perguntas como essas que o Dia Internacional da Síndrome de Down pretende levantar. A data, enfatizada anualmente em 21 de março, visa trazer também reflexões sobre avanços e os desafios que as mais de 7 milhões de pessoas com a chamada T21 enfrentam no mundo.


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O dia 21/03 foi escolhido pela Assembleia Geral da ONU em 2011, em alusão aos três pares do cromossomo 21. O dia simboliza o cromossomo 21 e o mês de março, por ser o terceiro mês do ano, simboliza a trissomia. O termo trissomia designa as três cópias do cromossomo 21. Ter dose tripla dessa partezinha do código genético é justamente o que caracteriza as pessoas com a Síndrome que leva o nome de seu descobridor, o médico britânico John Langdon Haydon Down.


Segundo ativistas da área, a desinformação ainda é o maior obstáculo para que a sociedade seja mais harmônica e equânime. Harmônica na socialização entre pessoas com e sem síndrome e equânime na garantia dos direitos dos portadores de T21.


E se o que falta é informação, é bom traduzir o que acontece quando um bebê com Down nasce para deixar o mundo mais colorido e doce. Explicando: todos nós temos 46 cromossomos, sendo que eles se dividem em 23 da mãe e 23 do pai com a finalidade der gerar o embrião, que novamente terá 46. Nas pessoas com Síndrome de Down ocorre uma terceira cópia somente do cromossomo 21, gerando 47 cromossomos ao todo, ou 46+1.


Não se trata de uma doença, mas uma alteração genética, que traz alguns desdobramentos no ritmo de desenvolvimento e inspiram alguns cuidados extras de saúde. No Brasil esta é a realidade de cerca de 330 mil pessoas, segundo Antonio Carlos Sestaro, presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down.


Ele enfatiza os avanços obtidos na área depois da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas Com Deficiência da ONU, realizada em 2006. O Brasil ratificou as resoluções em 2008 e houve o maior entendimento de que a deficiência não está no indivíduo, mas na falta de condições para a melhor interação da pessoa com o meio em que ela vive. “As barreiras têm de ser retiradas para que a pessoa com deficiência se aproprie dos espaços e das formas de se comunicar com a sociedade”, ressalta Sestaro, pai de Samuel Carvalho Sestaro, que possui T21.


Outro passo importante foi a Lei Brasileira da Inclusão, de 2015. “Todo esse avanço é uma luta de muito tempo. Precisamos dar mais visibilidade a essas pessoas. Boa parte já está nas universidades, trabalhando, empreendendo. No ano passado, tivemos até candidatos a vereador com Síndrome de Down em várias cidades”.


Não basta comemorar. É preciso ficar vigilante para que as conquistas não se percam. “Todo dia estamos atentos para que direitos conquistados não sofram ataques. No final do ano passado, tivemos o decreto federal 10.502, um verdadeiro retrocesso na área da educação. Com palavras doces ele sugere a separação das crianças com deficiência das demais. Tenta segregar e excluir, contrariando a Constituição, a Convenção Internacional e a Lei Brasileira de Inclusão”, afirma Sestaro.


Em 18 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal referendou, por maioria, a liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli suspendendo decreto de Jair Bolsonaro. O mérito ainda está em análise e há várias ações pedindo a inconstitucionalidade da medida.


Samuel Sestaro, de 30 anos, e sua noiva, Isabela Fernandes Correia, de 31 anos, são reflexo do poder transformador das políticas de inclusão. Eles moram juntos e se casarão em outubro deste ano. O noivo é formado em design de moda e em administração de empresas. Ocupa o cargo de vice-diretor da Região Sudeste da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e atua como palestrante e mestre de cerimônias. “Já dei palestra até na sede da ONU, em Inglês. Também participei de intercâmbios no exterior”, conta Samuel.


Isabela se formou no Ensino Médio e antes da pandemia trabalhava como modelo. Conquistou o título de Miss Ponta Grossa, sua cidade natal, no Paraná, além de outros concursos de beleza. O casal simboliza a geração que se beneficiou dos marcos legais da inclusão. “Se não estudassem em escolas regulares, como poderiam ter essas qualificações? O Samuel, por exemplo, não teria como fazer o vestibular sem cumprir o currículo escolar exigido”, frisa a advogada aposentada Vilma de Carvalho Sestaro, 67 anos, mãe do jovem.


Os pombinhos se conheceram em um projeto realizado em 2019, na cidade de Jurerê Internacional, Santa Catarina. Se apaixonaram e passaram a se comunicar pela internet. No ano passado, Samuel pediu a mão da amada em casamento. “Foi um dia muito especial. Na época que eu a conheci, pensei: ‘ela é uma modelo. Preciso ter uma boa postura e um bom comportamento para ficar com ela para sempre’”.


Deu certo: “Ela aceitou. Agora planejamos construir uma nova vida e curtir muito juntos”.


Feliz, Isa já imagina o futuro. “Temos planos como qualquer casal. Eu quero arrumar um emprego quando a pandemia passar. Queremos viajar. Vou conhecer lugares novos com meu futuro esposo”, conta.


Enquanto a crise sanitária não passa, eles estão fazendo um intensivão de cuidados com a casa. “Estou ensinando os dois a cozinhar e dando dicas sobre afazeres domésticos, pois vão viver de forma independente”, comemora Vilma.


Os detalhes do casório estão bem adiantados. A cerimônia religiosa e a confraternização serão na cidade da noiva. A perspectiva é de que até lá todas as pessoas do grupo de risco já estejam imunizadas.


Aliás, a vacinação para brasileiros com T21 é uma das batalhas da Federação. “Estivemos no Ministério da Saúde recentemente para enfatizar a necessidade de imunizar imediatamente as cerca de 100 mil pessoas entre 18 e 70 anos com Síndrome de Down no Brasil. Estudos científicos demonstram que a questão imunológica diferenciada requer a inclusão desse público no grupo de risco”, diz Sestaro.


Supermães


Cristiane Zamari Diogo, de 42 anos, é uma das cerca de 120 mil mulheres paulistas com filhos com Síndrome de Down. Mas só isso não basta para defini-la na categoria das supermães. Cristiane é mãe de um grande vencedor. Bernardo, hoje com 15 anos, nasceu com o “pacote completo”, como ela mesmo diz: leucemia, hipertensão pulmonar e cardiopatias, algumas com indicações cirúrgicas. A luta pela vida envolveu grandes batalhas e em todas elas era o pequeno quem mais dava demonstrações de força aos familiares e equipes médicas.


“Quando ele nasceu, eu até esqueci da Síndrome de Down. A luta pela vida se sobrepôs. De repente, tive que cuidar de um bebê leucêmico e com problemas cardíacos. Os médicos não sabiam se operavam o coração ou se tratavam a leucemia primeiro. Foram nove ciclos de quimioterapia. Ele ficou muito debilitado, mas venceu”.


Plenamente recuperada dos sustos, Cristiane, que também é a coordenadora de Defesa de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, passou a acolher gestantes que acabam de ter a notícia sobre a T21. “É um momento determinante para que as famílias reúnam forças e encontrem caminhos para trabalhar da melhor forma e o quanto antes o desenvolvimento de seus bebês”.


A história de Marcela Garcia Fonseca, 40 anos, reforça a necessidade de capacitar principalmente os profissionais de saúde. Ela conta que só quando seu príncipe nasceu, em junho de 2016, os pais suspeitaram de Síndrome de Down. O resultado do exame que confirmou a alteração genética de Henrique foi dado por uma médica despreparada. “Ela usou uma palavra que até hoje está entalada na minha garganta: ‘infelizmente o exame para T21 deu positivo’”.


Marcela se tornou uma das ativistas pelos direitos das crianças com a Síndrome e o jeito que encontrou de fazer isso foi por meio da culinária especializada. Formada em Direito, ela criou o site Papinhas Fora de Série (www.papinhasforadeserie.com), onde dá dicas valiosas para as mães prestes a iniciar a fase de introdução alimentar de suas crias.


São muitas receitas e informações nutricionais sérias, voltadas para as especificidades de saúde das crianças T21. “Senti a necessidade de ajudar


famílias que não têm a menor ideia do que oferecer para seus bebês com a Down. Pessoas que se deparam com uma grande barreira, que é a falta de informação nessa área. A cozinha é um lugar extremamente rico para a socialização e, por essência, um espaço produtor de saúde”.


Por serem totalmente naturais, nutritivas e equilibradas, as papinhas “fora de série” podem ser consumidas por todos os bebês, independentemente de terem ou não Síndrome de Down.


Henrique completa cinco anos esse ano. Esbanja saúde e vivacidade, comprovando o quanto é importante investir no cardápio desde cedo para os ganhos em saúde permanecerem no futuro.


Falando em futuro, os sonhos de Marcela para seu menino reforçam a veracidade do ditado ‘mãe é tudo igual, só muda de endereço’. “Desejo que ele voe alto, tenha autonomia para trabalhar, cursar uma faculdade que goste, se case e tenha filhos. Costumo dizer que ele veio para ‘henriquecer’ nossas vidas e nos ensinar muito”, derrete-se.


Ensinar é algo que o adolescente Bernardo faz todos os dias a quem convive com ele. “O Bê me ensinou a valorizar o hoje e a ser feliz com as pequenas coisas. Aliás, não tem ninguém melhor que nossos filhos para nos fazer acreditar neles, mesmo quando outras pessoas desacreditam”, conta Cristiane, que sofreu para encontrar uma escola no Ensino Fundamental que acolhesse com respeito e competência as necessidades do filho.


A lição maior, porém, é a da empatia e do respeito às diferenças. “Todos somos únicos. Todos somos especiais”, resume Marcela.


Cristiane concorda e manda um recado às mamães de primeira viagem. “Não serão só momentos bons. Gerar um bebê com T21 requer o entendimento de que são seres humanos com muitos potenciais a serem desenvolvidos. Com amor incondicional e em rede com outras mães, fica mais fácil enfrentar as dificuldades por eles e com eles”.


Já diria o ditado árabe: “Quem planta tâmaras, não colhe tâmaras.” O processo de cultivo da fruta é o mais altruísta da natureza. Diferente de outros alimentos que podem ser colhidos em poucos anos, as tâmaras podem demorar até 80 anos para serem separadas e ingeridas. Partilhando do mesmo sentimento, Viviane Reis é como o vento que espalha a mudança e que só será visível pelas futuras gerações. Mãe da pequena Maria Clara, de apenas 11 anos, Vivi Reis, como prefere ser chamada, é administradora da página ‘InclusivaMente’ e semeia conhecimento para mães de crianças com Síndrome de Down.


Formar a mulher que hoje levanta a bandeira da inclusão na internet não foi do dia para a noite. Já no nascimento de Maria Clara, Vivi entendeu que precisaria derrubar preconceitos. “Tenho dois filhos. O João Pedro é o mais velho. Quando ele nasceu, me deram ‘parabéns’. Já quando a Clarinha veio ao mundo, os médicos disseram ‘sinto muito’”, relembrou.


Ainda na maternidade, outro episódio de falta de humanização. Já no quarto, um médico a interrompeu enquanto amamentava Maria Clara. A alegação foi que muitas crianças com Síndrome de Down têm dificuldade para mamar e por isso a bebê não ia conseguir. “Como eu não sabia, tentei amamentar, deu certo e ela só desmamou com 1 ano e 2 meses.”, disse Vivi Reis.


Primeiro pilar (rede de apoio)


Criar um filho não é tão simples como em um comercial de margarina. As novelas, filmes e propagandas não mostram o dia a dia. Todas as necessidades de um bebê são sempre urgentes (para ele, claro!) e o choro é a única forma de comunicação nos primeiros meses de vida. Nesse contexto, almoçar, tomar banho e dormir se tornam um desafio e o estresse dessa relação precisa ser amenizado com uma boa parceria. É aí que entra a importância de ter uma boa rede de apoio (familiar ou não).


Ao ter alguém com quem contar, a mulher que acabou de entrar no puerpério tem a oportunidade de sentir de uma forma mais leve toda essa mudança que a maternidade traz. Afinal, além do bebê e da avalanche hormonal do pós-parto, as famílias ainda têm que lidar com as atividades domésticas. No caso de uma criança com Síndrome de Down, a parceria familiar se torna o principal pilar a sustentar, não só a mulher fragilizada como a criança recém-chegada. É essa união que poderá abrir caminhos para que a vida desse novo ser seja repleta de oportunidades.


“Em relação a síndrome de Down, tudo era novo pra mim. Há 12 anos, não tínhamos tantas informações. Nesse período, meu marido, por ser psicólogo, entendia mais do assunto do que eu. Então sempre conversamos e tivemos muita parceria para contribuir para o desenvolvimento da Clarinha.”


O irmão mais velho da pequena, João Pedro, hoje com 14 anos, foi um dos maiores incentivadores do desenvolvimento da menina. “Tenho registrado um vídeo lindo que é da primeira vez que a Clarinha andou. O João Pedro está


incentivando de um lado e dizendo “você consegue” para que ela desse os primeiros passos”, lembrou Vivi.


Segundo pilar (escola)


A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) é cristalina: a escola, pública ou privada não pode recusar a matrícula de um aluno por conta de sua deficiência. A educação, mesmo que seja feita de forma particular, deve seguir as normas públicas, portanto, a recusa, a cobrança de valores adicionais, suspensão, procrastinação ou cancelamento de matrícula em razão da deficiência é ilegal e configura em crime previsto na própria LBI, com prisão de 2 a 5 anos e multa.


No entanto, teoria e prática tendem a caminhar como retas paralelas. É raro ocorrer o caso de uma reta perpendicular, quando a escola acolhe de maneira adequada a criança e atua para o seu desenvolvimento.


Vivi Reis e Maria Clara sentiram na pele o quão desafiador é encontrar uma escola que cumpra a legislação. Vivi relembrou inúmeros casos de equipes pedagógicas que alegaram falta de preparo para receber uma criança com Down. “Na verdade, elas não querem ter o trabalho de encarar o desafio que é ensinar uma criança com essa característica”, avaliou a mãe.


Para Vivi, o preconceito que grita na vida adulta pode ser combatido ainda na infância. “Uma escola inclusiva traz benefícios a todas as crianças. A convivência plural faz com que crianças sem deficiência desenvolvam diversas habilidades socioemocionais e cognitivas. Se só tenho pessoas iguais a mim, eu empobreço a forma na qual recebo a informação.”


Terceiro pilar (equipe médica)


Para auxiliar a criança e família em seu desenvolvimento, o apoio de uma equipe multidisciplinar, envolvendo, além de médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e outros profissionais são fundamentais. Por meio desses atendimentos, as chances de conquistas para uma vida mais autônoma são ampliadas.


Além da humanização, essencial em qualquer atendimento, é preciso ter um olhar mais sensível para essas famílias. “Quando fizemos o exame para comprovar que a Clarinha tinha Down, o diagnóstico do laboratório constatava ‘aberração genética’. Por mais que seja esse mesmo o nome dado pela ciência, é preciso entender que uma família leiga vai ler e se assustar com o termo.”


A pessoa com síndrome de Down não é um doente. Ele tem uma condição genética. Na escola aprendemos isso. Você pode não lembrar, mas certamente precisou responder em uma prova o que é a ‘trissomia do cromossomo 21’. Na prática, uma pessoa com Síndrome de Down tem um cromossomo a mais que os demais, por isso a condição. Isso está longe de ser uma invalidez.


InclusivaMente


Criada há seis anos, a página que hoje tem mais de oito mil seguidores no Facebook e quase quatro mil no Instagram busca abrir espaços, trazer este novo olhar sobre a diversidade. “Comecei capacitando escolas, educadores, terapeutas e famílias, através de cursos, workshops e palestras. Nesta intenção de buscarmos soluções possíveis por estes caminhos ainda pouco percorridos”, resume Vivi.


Hoje, o InclusivaMente atende famílias e escolas, orientando e mostrando caminhos possíveis para que a inclusão aconteça em sua plenitude, com todos aprendendo juntos. “Não é responsabilidade só de um, somos todos responsáveis por nossas atitudes e omissões”, resume a criadora da página.


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