Mulheres mostram seu próprio lugar

Livres, leves e soltas, profissionais contam como se encontraram em carreiras ainda vistas como masculinas

Por: Sheila Almeida  -  09/03/20  -  22:02
Atualizado em 09/03/20 - 22:11
Lívia Lopes, sommelière de cervejas: 'Rola uma resistência'
Lívia Lopes, sommelière de cervejas: 'Rola uma resistência'   Foto: Fernando di Santis

Lugar de mulher é onde ela quiser. A frase nem tem dono, de tanto que se popularizou. Se espalhou por aí como um bordão, uma certeza, um desejo. Nesse Dia Internacional da Mulher, ela é repetida, evidenciada, aclamada e, mais que isso, vivida. Tem muita gente por aí provando que, apesar das inúmeras resistências, ser mulher é ser livre.


Lívia Miranda Martins Lopes, de 30 anos, é um exemplo. Ela está agora em viagem, pela Bélgica. Foi comemorar o próprio aniversário por lá e escolheu o destino não por acaso. A sommelier de cervejas ama as bebidas belgas. Foi descansar e conhecer as fábricas das que mais gosta, para brindar a vida – que mudou quando ela decidiu arriscar. Para ela, sempre houve liberdade, mas nem todo mundo entende seu jeito livre de ser mulher.


“Quem me iniciou, por incrível que pareça, foi meu pai. Quando eu era pequena, sempre via ele bebendo cerveja e ficava com a curiosidade. Eram cheiros, cores diferentes. Com os anos, ele foi me dando a espuminha. Hoje sou sommelier e meu pai se orgulha. Diz que meu avô iria adorar uma neta para beber com ele e ainda saber do que está falando”.


A curiosidade pela bebida foi crescendo com a idade. Sempre foi do tipo que, antes de escolher a bebida na prateleira, tinha o hábito de ler os rótulos detalhadamente.


Foi se encantando pelo assunto e procurando descobrir novos sabores, até perceber que trabalhar no ramo seria, no mínimo, interessante. Surgiu a oportunidade num pub. Se apaixonou – não por ninguém – mas pelo novo ramo. Trocou a Administração pelo mundo cervejeiro.


Tinha 26 anos quando começou e, cerca de 1 ano e meio depois foi se especializar. Fez o curso de sommelière de cervejas. Passou a entender mais e descobriu que não era a única. Metade da turma era composta por mulheres.


“Me senti na obrigação. Como eu trabalhava com isso e, por ser mulher e sentir o preconceito, achei que tinha que falar com propriedade naquele ambiente totalmente masculino. Gosto, porque muita gente não sabe o que quer beber e hoje consigo passar a informação”.


Mesmo com a desenvoltura, no dia a dia Lívia Lopes ainda passa por situações constrangedoras – pelo menos, não para ela. Segundo a profissional que gerencia a cervejaria onde trabalha, a maioria dos homens ainda faz perguntas sobre cerveja só aos funcionários do sexo masculino da casa. Quando atendidos por mulheres, alguns confirmam tudo depois com qualquer colega ao lado.


“Mas sabem eles que só as mulheres da equipe são sommelières. Antes, eu achava que nem tinha tanto (machismo) assim, mas tem. Eles não nos levam a sério. Não aceitam que eu, como mulher, saiba falar melhor de cerveja do que eles. Rola essa resistência e nem é por idade”.


A tal sensibilidade feminina é exigida com um toque de paciência quase toda vez que ela é abordada.


“Entre as perguntas que mais ouço no trabalho está: Qual cerveja que tem para mulher? E eu respondo: todas! Uns ficam bravos e perguntam de novo a outro garçom”, conta, lembrando de outros casos icônicos. “Teve cliente que chegou a falar: eu queria muito saber quem é o cara que faz o hambúrguer aqui, porque ele está de parabéns. E respondi: Vocês têm que perder a mania de pensar que tudo é bom, é feito por homens. Mas pode deixar que falo à cozinheira”.


Jennifer Sinva, investigadora de polícia: 'Policial pode ter cabelo comrpido e unha feita'
Jennifer Sinva, investigadora de polícia: 'Policial pode ter cabelo comrpido e unha feita'   Foto: Vanessa Rodrigues

Coragem


Quem também quebra preconceitos todos os dias é Jennifer Braga da Silva, de 34 anos. Quando criança, ela era a menina da turma que sempre brincava de polícia e ladrão. Hoje é investigadora da Polícia Civil, em Santos.


Mais que enfrentar os olhares desconfiados em alguns casos que atende, ela precisou da força natural da mulher de se dividir em várias, não só para encarar o trabalho, mas para conseguir a coragem de entrar na carreira.


“Já fiz faculdade de Direito pensando em prestar concurso. Advoguei três anos até conseguir, mas não foi difícil só por trabalhar e estudar. É que, quando nomeada, eu quase desisti. Meu pai estava muito doente”. 


A rotina da investigadora foi tensa. Ela subia e descia a serra todo dia para os cuidados com o pai. Ele se tratou de um câncer, mas sentiu uma tontura, caiu e formou um coágulo de sangue na cabeça. O problema o fez operar quatro vezes. Na última, quase morreu.


“Às vezes eu saía do curso à noite, descia a serra para ficar com ele no hospital e voltava para São Paulo de manhã. Mas fui muito resiliente. Meu pai me pediu para eu não abandonar o meu sonho. Me formei, passei com uma pontuação que me permitiu atuar na Baixada Santista e hoje tenho meu trabalho dos sonhos e o meu pai perto e bem, graças a Deus”. 


No cotidiano, não são só as investigações que Jennifer tem de encarar. Ela também precisa provar a algumas pessoas que o cargo que ocupa é para homens e mulheres.


“Para mim sempre foi muito difícil, porque sempre tive esse jeitinho que as pessoas acham angelical. Quando eu dizia que queria ser policial, falavam que eu não tinha perfil. Não é assim. Sou dura quando tenho que ser e policial pode ter cabelo comprido e unha feita. O que define a nossa competência não é nosso sexo, o que a gente veste ou usa. É o nosso trabalho”. 


Lívia Pacheco, empresária:
Lívia Pacheco, empresária: "A mulher 'bonitinha' tem que provar que é competente   Foto: Alexsander Ferraz

Desafios


É a mesma opinião de Lívia Pacheco. A mãe da Ana Clara, estudante de Medicina de 19 anos e do Miguel, de 5. Ela conta que.como mulher, precisa muitas vezes primeiro provar seu conhecimento para passar a ser ouvida e respeitada, quando não a conhecem. E experiência não a falta.


A empresária hoje é dona de uma empresa de assessoria aduaneira, a Linnity; tem uma atacadista importadora de tapetes e foi fundadora de uma operadora portuária que carrega e descarrega granel no maior Porto da América Latina. Apesar da história pessoal e profissional, conta.


“A mulher ‘bonitinha’ precisa provar que é competente. Essa é a primeira barreira. Depois, tem que mostrar que tem conhecimento. Depois, habilidade, estratégia e só aí as pessoas esquecem sua aparência e te ‘colocam no grupo’. Complicado”. 


O jogo de cintura ela aprendeu logo cedo, com a vida, quando percebeu que mudar e arriscar faziam parte do jogo. Primeiro, Lívia Pacheco foi atleta de vôlei. Chegou a jogar por várias cidades da Baixada Santista na juventude, mas deixou a carreira esportiva quando percebeu que não ia decolar. Foi trabalhar na administração de uma escola e depois na área de transportes, onde ganhou conhecimento para o primeiro passo em direção aos próprios negócios. 


“Percebi no ramo de transportes que havia uma alta capacidade de prospecção ali. Como eu queria dar uma nova roupagem para o atendimento, abri minha primeira empresa aos 25 anos, a Linitty, aberta até hoje”.


Enquanto a Linitty estava em pleno funcionamento, Lívia Pacheco abriu mais duas empresas ligadas ao comércio exterior. Inquieta – como ela mesmo se define – o que ela buscava era estabilidade financeira e realização pessoal, algo que segue trabalhando para manter. Arriscou a cada oportunidade até chegar onde está. Percebeu que não é preciso ser “pai de família” para ter um motivo de correr atrás dos sonhos.


“Eu até concordo que a sensibilidade feminina que é muito mais aguçada, mas isso não nos impede de nada. Entendo que a mulher tem capacidade igual a do homem. Não é só homem que tem que trabalhar se quiser uma carreira. E se ela quiser, tem que engravidar sim. O que precisa, para qualquer sexo, é ter coragem de defender com garra o que a gente quer e se posicionar”.


Para ela, neste dia 8 de março, o desejo é ter respeito. “Respeito à história de cada um. E se rolar um cartãozinho, chocolate e uma flor, tudo bem também”, diverte-se.


A sommelière Lívia Martins reafirma esse anseio. Ela quer liberdade de expressão. “Para falar o que a gente quer sem as pessoas desacreditarem, por sermos mulheres. Além disso, desejaria que tivéssemos mais segurança – o que estamos caminhando, melhorando, mas longe”. 


A investigadora da Polícia Civil, Jennifer Silva, que trabalha pela segurança de homens e mulheres, também faz questão disso, até pela profissão que escolheu. Quer respeito e segurança a todas as pessoas, mas como mulher, resume que tudo isso seria possível com outro presente. 


“O que eu queria hoje era que tivéssemos igualdade. Todo mundo é igual. Então, por qual motivo somos tratadas de maneira diferente? Já avançamos muito nisso, mas a gente precisa ainda levantar a bandeira e lutar pelos nossos ideais”.


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