Monja Coen expõe suas imperfeições para nos ensinar a viver melhor

Religiosa não tem problema em dizer que ainda é uma pessoa nervosa, que já tentou se suicidar e que foi presa com droga

Por: Stevens Standke & Da Redação &  -  26/08/19  -  14:44
Claudia Dias Batista de Souza, a monja Coen, é grande referência do budismo no Brasil
Claudia Dias Batista de Souza, a monja Coen, é grande referência do budismo no Brasil   Foto: Sílvio Luiz/ AT

Uma das principais referências nacionais do budismo, Claudia Dias Batista de Souza, a monja Coen, costuma inspirar multidões das mais diversas crenças com seus livros e palestras. Para se ter ideia, em Santos, ela falou em março, no Teatro Coliseu, para mais de 700 pessoas e, como os ingressos disponíveis não foram suficientes para atender a demanda, voltou para uma nova palestra na Cidade neste mês, que atraiu cerca de 500 pessoas para o Mendes Convention Center. Em seus ensinamentos, a monja aborda os temas mais variados do nosso cotidiano, entre eles depressão e infidelidade. 


“O fato de que a gente faz um compromisso de fidelidade quando está em uma relação não torna as outras pessoas feias e nem um pouco desejáveis. Mas, se assumi esse compromisso, devo mantê-lo, mesmo que sofra tentação e, por ser humano, tenha fragilidades”, afirma. E seja nas palestras, nas aparições na mídia ou no romance biográfico Monja Coen: A Mulher nos Jardins de Buda, fica claro que ela não se preocupa em passar a ideia de que é um ser humano perfeito, que não erra. Muito pelo contrário. Admite, por exemplo, que já tentou se suicidar, foi molestada na infância, ficou cinco meses presa em uma solitária na Suécia por traficar LSD e, até hoje, se considera uma pessoa nervosa e impaciente. Mas com isso, no fundo, quer mostrar que, independentemente do que aconteça, podemos melhorar, evoluir. Na entrevista a seguir, a paulistana de 72 anos, que já é avó e foi casada cinco vezes – um dos ex-maridos era norte-americano; outro, monge –, fala ainda da época em que trabalhou como jornalista e como foi viver enclausurada em um templo no Japão.


DESPERTAR O que a preocupa quando analisa o mundo atual?


Nós estamos em um processo de amadurecimento, de crescimento. Confesso que, às vezes, sou meio impaciente e fico me questionando: “Qual é a razão para esse despertar das pessoas estar demorando tanto?” Até porque esse processo a que me refiro não começou agora, ele teve início lá atrás, assim que a humanidade surgiu. Mas é preciso que atravessemos esse caminho por completo, com compreensão e paciência. É o mesmo que acontece com uma planta: por mais que você cuide dela, não pode fazer com que cresça de uma hora para outra. Por esses dias, eu estava, inclusive, escrevendo a respeito. Imagine a seguinte situação: você coloca um grupo de crianças para correr até uma árvore, com a condição de que a que chegar primeiro vai ganhar uma cesta de doces. Aí, todas resolvem correr juntas, sem se importarem com qual teria mais mérito ou condições de vencer. E, depois, compartilham os doces.


Qual é a mensagem por trás disso?


Esse é o tipo de olhar, de atitude que nós tínhamos no passado e que acabamos perdendo. Nossa educação se tornou individualista: eu é que tenho que ganhar, que ser o primeiro; eu é que mereço algo mais do que o outro. Se rompermos essa barreira e voltarmos a ter a compreensão de que todos formamos um só corpo, vamos ser capazes de cooperar mais uns com os outros, em vez de competir.


Outro ponto crucial é que, por mais conectados que estejamos hoje, parece que o ser humano nunca esteve tão sozinho.


E muitas pessoas, quando as coisas não andam do modo como queriam, falam que não vão “jogar” mais, pegam a “bola” e vão embora. Falta, como comentei, paciência. Esse e outros princípios devem ser ensinados e treinados desde cedo. Tanto é que várias escolas ao redor do mundo estão colocando ioga e meditação como parte dos seus currículos. Precisamos desenvolver o autoconhecimento, pois, se não conhecemos as nossas emoções, elas podem nos derrubar.


EXCELÊNCIA Nas suas palestras, a senhora admite que já tentou tirar a própria vida. O que faz questão de deixar claro ao compartilhar uma situação tão delicada como essa?


Com 19 anos, nada estava dando certo, eu achava a minha vida horrorosa e queria morrer, que tudo acabasse, pois não aguentava mais. Tentei me suicidar, mas não tive êxito. E pensei comigo mesma: “A partir de agora, vou viver da melhor forma que posso”. Acredito que, no meu caso, essa foi a diferença, sabe? A gente não pode levar a vida de qualquer jeito ou fazer as coisas só para agradar os outros. Devemos fazer o que realmente gostamos de fazer, o que nos dá prazer e temos de buscar excelência naquilo. Não me refiro apenas a grandes projetos. Pode ser limpar o chão com excelência. Sugiro que, diante de pensamentos contrários à vida, a pessoa diga para si mesma: “Não vou fazer isso hoje”. Ela deve repetir essa frase internamente todas as vezes em que as ideias suicidas aparecerem, até sumirem definitivamente.


Que outra atitude pode fazer diferença nas nossas vidas?


Além de buscarmos a excelência no que realizamos, temos de estar por inteiro nos lugares, não fazer algo aqui com a cabeça em outro local. Essa atitude é bem comum quando mexemos no celular enquanto andamos. Quando for caminhar, faça daquele momento algo gostoso. Sinta o chão, a brisa, os sons, note o que ocorre à sua volta.


É verdade. A vida acelerada e a tecnologia acabam nos engolindo...


Devemos aprender a utilizar a tecnologia nas horas adequadas. E não podemos deixar a vida perder a graça, ficar cinzenta, sem cor. Certa vez, uma travesti, que trabalhou com prostituição em Paris (França), veio praticar budismo comigo e contou que uma amiga, que também se prostituiu, começou a ter de comer pimenta bem forte para poder sentir algo na vida, porque já não era capaz de ter quase mais nenhuma sensação. Quando o nosso corpo é muito abusado, costumamos criar uma armadura e paramos de sentir as coisas. Isso é perigoso. Digo mais: uma pessoa verdadeiramente forte não abusa, não grita, nem insulta ninguém. Pelo contrário, ela provoca o que há de bom no outro.


IRRITAÇÃO A senhora já comentou que, antes de se tornar monja, era bastante nervosa. Demorou para mudar esse seu comportamento?


Eu ainda sou assim. Existem características nossas que não mudam. Lembro que o Dalai Lama, em um de nossos encontros, falou: “Pratico meditação desde os 6 anos. Só a partir dos 16 comecei a entender o que é meditar. Sabe o quanto mudei de lá para cá? Quase nada. Mas passei a me conhecer”. Vale dizer que, naquela época, ele tinha uns 70 anos; hoje, está com 84. Ou seja: não significa que a gente vai mudar radicalmente, apenas começamos a nos entender. Tenho consciência de que faz parte de mim ficar impaciente. Não dá para jogar isso fora, até porque me ajuda a fazer melhor as coisas.


Como é que administra o nervoso?


Aceitei o fato de que sou nervosa, agitada e aprendi a respirar, a dar um tempo antes de agir, de tomar uma atitude. Por exemplo, se recebo uma mensagem que não me agrada, levanto, respiro, analiso aquilo de novo e aí sim respondo. Trabalho muito com o raciocínio: será que vou comunicar realmente o que quero ou vou estar somente reagindo àquela situação. Se nós apenas reagimos a algo, a chance de fazermos bobagem é grande.


TRANSIÇÃO O que a levou a deixar de ser jornalista e virar monja?


Com o exercício do jornalismo, tive contato com pessoas de todas as classes sociais, com todos os tipos de sofrimentos. E quando somos jovens, ficamos pensando o que podemos fazer para que o mundo seja melhor, para que não existam tantas desigualdades e absurdos. Fui fazer matéria sobre sociedades alternativas na Califórnia (EUA), um pessoal que, há 60 anos, já reciclava e não usava agrotóxicos. Assim, descobri os zen budistas.


A partir daí, me chamou a atenção o fato de que os Beatles e os grupos de rock’n’roll de que gostava, entre eles Yes e Pink Floyd, também meditavam. Ainda me questionei de onde monges vietnamitas tiravam o controle necessário para se deixar queimar em praça pública. Sem contar que, por aqui, com o governo militar, pessoas eram presas e desapareciam, havia a censura aos jornais... Para completar, desde criança me perguntei: o que é isso que minha mãe – uma mulher que respeito – chama de Deus?


A sua família é bem religiosa?


O lado da minha mãe é muito católico. Até cogitei me tornar freira. Agora, o meu pai era ateu. Esses olhares opostos alimentaram o meu questionamento. Só que, ao aderir às práticas meditativas, pensei: “Nossa! Isso dá sentido para a minha vida, responde as minhas perguntas”. Acabei me casando com um norte-americano (Paul Weiss, ex-iluminador de palco de Alice Cooper), fui trabalhar como funcionária do Banco do Brasil em Los Angeles (Califórnia) e, um dia, falei para o professor de meditação que queria me tornar uma monja. Ele disse: “Imagina! A sua família é católica”. Rebati: “Mas aprendo!” (risos). Passei a perguntar toda semana para ele quando ia marcar a data para que virasse monja.


E quando foi que isso aconteceu?


Não demorou muito. Quando os meus pais mostraram que estavam de acordo com a minha escolha, o professor abriu o livro e falou que podíamos marcar a data da minha ordenação. Lembro que a minha mãe comentou: “Entendi que você está seguindo a quem eu chamo de Deus. Te dou a minha bênção”. Na sequência, fui morar na comunidade de Los Angeles. Lá, trabalhei como secretária até me tornar monja (em 1983).


É verdade que chegou a viver em clausura no Japão?


Sim. O problema é que eu só queria ficar na clausura (risos). No fim da minha formação, o meu professor de Tóquio pediu para que me mudasse para um templo perto do Monte Fuji. Eu gostava tanto da clausura que esse professor e a minha superiora falaram: “Não estamos educando uma monja para virar eremita”.


HUMILDADE Tudo isso a melhorou como mãe e avó?


Sem dúvida. Viajei com minha filha para o Japão recentemente. Ela se pôs a chorar diante da minha superiora e agradeceu o que tinham feito por mim, para que me tornasse um ser humano melhor.


O mais legal é que a senhora não esconde que teve uma vida comum, com erros, acertos, exageros etc.


É normal acharem que eu, por ser monja, posso querer mostrar que sou perfeita, que nunca fiz nada errado. A minha irmã falava que eu era santinha do pau oco (risos). Vivi um pouco de cada coisa. Acabamos tendo várias experiências enquanto estamos procurando um caminho, um sentido para a nossa vida.


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