Luiz Felipe Pondé avalia o 'surto psicológico' da humanidade e como enfrentar essa realidade

O conceituado filósofo comenta, entre outros assuntos, o conceito equivocado de felicidade difundido atualmente

Por: Stevens Standke  -  28/02/21  -  17:37
  Foto: Doca Presença Digital/ Divulgação

Junto com os colegas e amigos Mario Sergio Cortella e Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondétem conseguido difundir a filosofia nos mais diversos segmentos da sociedade.Com isso, espera ajudar a combater o senso comume fazer alertas como opresente em seu novo livro,A Era do Niilismo – Notas de Tristeza, Ceticismo e Ironia, deque a sociedade precisa acordar do surto psicóticoque está vivendo desde oséculo 19. Pós-doutoradopela Universidade de Tel Aviv (Israel) e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC)e da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), o conceituado filósofo comenta, entre outros assuntos, o conceito equivocadode felicidade que as pessoas costumam difundir hoje em dia.


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CRISE Qual foi o ponto de partida de seu novo livro, A Era do Niilismo?


Há muitos anos, sou um leitore estudioso da literatura russa. Nela, o niilismo (pensamento que considera as crenças e os valores tradicionais da sociedade como infundados e inúteis) é um tema importante, principalmente no século 19, pois corresponde auma chave para a gente fazer uma análise da modernidade. Eu já havia escrito livro sobre o filósofo russo (Fiódor) Dostoiévski em 2003 e tinha a intenção de voltar a abordar a literatura russa. Comecei a preparar essa nova obra entremaio e junho do ano passado.A pandemia acabou me dandomais tempo para realizar aminha pesquisa, para estabelecer as fontes que eu ia utilizar.


No livro, você afirma que o homem vive um surto psicótico em plena modernidade. Essa analogia é bem curiosa, para não dizer chocante.


Como a humanidade permaneceu um bom tempo sem ter poder técnico e de gestão considerável, ficou levando uma vida em círculos, em contenção, sem sair do lugar. Conforme fomos avançando, entramos na modernidade e em um surto psicótico, até agora funcional, que denomino como a Era do Niilismo. A sociedade acreditou em determinadas coisas por milênios. Com a atual destruição de certos hábitos e crenças, temos percebido que não existe nada por baixo disso, apenas um vazio.


Em contrapartida, há o senso comum de que estamos no período de maior progresso da humanidade. Como fica isso?


Quero deixar claro que não estou falando que o passadoera melhor ou que o mundo ficou pior do que era. Muito menos há qualquer nostalgiada minha parte. Eu só estou dizendo que o passado era estático e que, especialmentea partir do século 19, a modernização pôs em cursoum processo de mobilidade,que produziu a experiênciado nada, do vazio que citei.


Então, vivemos uma fantasia?


Todo surto tem um pouco de fantasia, principalmente quando ele dá certo em um determinado nível, com a gente conseguindo realizar um monte de avanços técnicos.Por isso eu disse que o surto da humanidade foi até agora funcional. Observe por aí como existem pessoas psicóticas que são superfuncionais e que montamum esquema que permite que levem a vida adiante numa boa, sem precisarem enfrentar essa realidade. Mas, de uma hora paraa outra, algo pode acontecer e colocar esse esquema em colapso.


DENÚNCIA O que devemosfazer para sair desse surto?


Não vejo nenhuma solução objetiva no horizonte, porque, como setrata de uma questão estrutural e material, não basta a gente simplesmente acordar e falar que, a partir de hoje, não vai mais fazer parte do surto e que o mundovai mudar. O único caminho que enxergo é o que estou tentando trilhar: denunciar a grande mentira que estamos vivendo, ainda mais agora que as pessoas achamque tudo segue em direçãode um capitalismo conscientee, consequentemente, de uma vida melhor no futuro. Despertar deum surto nunca é fácil, pois ele determina os nossos limites de mundo reconhecível. Mas tem gente que, há algum tempo e de formas distintas, começou a se dar conta do que está acontecendo,de que andamos sobre um vazio. Sei que, no geral, é complicado entender a situação em que nos encontramos, até porque estamos numa batida de transformaçãodo marketing em grande narrativa da sociedade. Mente-se mais hoje do que nos séculos 19 e 20.


A solução passa por resgatara racionalidade e alguns valorese conceitos do passado?


A gente não consegue fazer um valor funcionar de verdade sópelo fato de o considerar legal e determinar que seja adotado.No final das contas, ele vai acabar funcionando mais ou menos.Isso pode funcionar melhor dentro da lei e em lugares com hábitos culturais homogêneos e uma economia propícia, como a Dinamarca. E não é porque evoluímos, por exemplo, na telefonia e na comunicação que vamos progredir como pessoas. Pensadores como Friedrich Nietzsche, Sigmund Freude Arthur Schopenhauer jádiziam que o homem é meiodoente e que dificilmente vaideixar de ser assim. O mito do progresso é uma completa desgraça da racionalidade.


  Foto: Doca Presença Digital/ Divulgação

FELICIDADE Você dá um outro choque no livro, ao afirmar quea humanidade sempre foi triste.


Eu não acho que, há mil anos, alguém colocasse a questãoda felicidade como a gentecoloca hoje. A atual ideia de felicidade está atrelada à realização de um desejo quase sempre material. Entenda bem: não vejo nada de errado nisso a princípio.O problema passa a existir como massacre que se faz hoje em dia para a gente ser feliz, positivo, assertivo, próspero. Assim, nós acabamos sofrendo bastante. Quando digo que a humanidade sempre foi infeliz, é porque, conforme ela evoluiu, passou a saber mais coisas do que consegue lidar de fato e percebeu aspectos que os bichos não percebem.Nós temos absoluta consciênciada violência que produzimos ao longo da história para podermos sobreviver. No meio disso,a gente também fez coisas boas. Somos capazes de agir com generosidade, solidariedade...Em compensação, a mesmapessoa que é generosa com você pode ser escrota com os demais. Portanto, somos uma espéciemeio caótica. A infelicidadenasce do fato de sabermosque somos mortais, que nos frustramos e que não controlamos tudo. Olha só a enorme experiência de tristeza que a gente estávivendo agora com a pandemia.


No livro, há o seguinte dado:apenas daqui a 200 anos deveremos ter noção exata do que está ocorrendo no mundo. O queacha que vem depois disso?


Acredito que tudo talvez seria menos pior se tivéssemos uma crise econômica em que as pessoas passassem a consumir menose a necessitar de menos bens materiais, e que elas também fossem menos a coaches para ter sucesso e conseguissem acalmaro coração perante a constataçãode que a vida nem sempre é dojeito que queremos. Isso nunca vai acontecer na realidade, pois o preço dessa transformação seria muito alto; essa quebra radicaldo capitalismo implicaria em sofrimento demais. O que podemos projetar para o futuro é um mundo com pessoas talvez mais longevase solitárias, com menos crianças e jovens. Uma sociedade com elevado consumo de substâncias químicas para se combater o tédio, apesar das condições de vida melhores,do ponto de vista material.No fundo, o capitalismo é bem louco. Ele cria a ideia de que a economia jamais pode parar, que sempre deve haver crescimento e que as metas não podem deixarde ser batidas. Como a gente não entende que isso é um surto?


Quem tira um ano sabático ouvai morar em meio à natureza,de certo modo, foge desse surto?


Em primeiro lugar, devemos lembrar que as pessoas que fazem isso costumam dispor de condições materiais que permitem que se lancem nesse tipo de experimento. Não há dúvida de que esses privilegiados escapam um poucodo ciclo de enlouquecimento quea sociedade vive principalmente nos últimos dois séculos. Só queé difícil colocar esse tipo de experimento como uma opção de vida para a maioria da humanidade. Também precisa ver se quem adota esse estilo de vida diferenciadovai conseguir se manter fiel a ele, sem cogitar criar uma pequena empresa, por exemplo, de geleia natural para ganhar dinheiro.


CONTRIBUIÇÃO O que acha de você, o Mario Sergio Cortellae o Leandro Karnal estarem conseguindo tirar a filosofia do contexto acadêmico e levá-lapara o dia a dia da população?


A filosofia nasceu desse jeito, dialogando com as pessoas comuns, que não tinham formação para debatê-la. Ela não surgiu como uma profissão com aqual você paga contas; era uma concorrente da religião, e por defendê-la, Sócrates perdeu a vida. A filosofia procura fornecer um pensamento mais qualificado sobre as coisas, para fugirmos do senso comum. Acho que eu e os meus colegas e amigos Karnal e Cortella, apesar de sermos originários do meio acadêmico, temos o talento para falar da filosofia com uma linguagem mais aberta, acessível. Nós três nos preocupamos em explicar as situações de uma maneira que a maioria daspessoas entenda. Sempre fomos professores apaixonados pelo ensino, gostamos de dar aula. Isso ajudou nosso trabalho a ganhar amplo alcance na mídia, no mundo corporativo e nas redes sociais.


Qual a expectativa daqui em diante?


As pessoas tendem a consumir obras de filosofia e autores que fazem mais sentido para o seu cotidiano, que tocam os seus corações. Espero que não só isso continue a acontecer como também que eu, o Karnal e o Cortella consigamos formar geraçõesmais jovens que perpetuemo que nós estamos realizando, esforçando-se para contribuirpara que a população olhe o mundo de forma mais completa, menos idiota. E que esses indivíduos se mantenham longe da polarização política, da baixaria e da miséria semântica que tomaram conta da discussão política.


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