Leticia Sabatella fala sobre carreira e lado ativista

Atriz e compositora está cheia de projetos na TV, no cinema, no teatro e na música; ela também fala sobre sua luta por causas indígenas, ambientais e defende o MST

Por: Stevens Standke & Da Redação &  -  01/04/19  -  13:08
Nascida em Belo Horizonte, a atriz de 48 anos cresceu em Curitiba, onde começou a fazer teatro
Nascida em Belo Horizonte, a atriz de 48 anos cresceu em Curitiba, onde começou a fazer teatro   Foto: Rafael Sorín (TV Globo/ Divulgação)

Pode não parecer, mas Leticia Sabatella já tem mais de 30 anos de carreira. Natural de Belo Horizonte (Minas Gerais), a atriz de 48 anos cresceu em Curitiba (Paraná), onde começou a fazer teatro amador com 14 anos, além de cantar e dançar. Aos 20, ainda estudando Artes Cênicas na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Paraná, recebeu o convite do diretor Luiz Fernando Carvalho para estrear na TV, na minissérie global Os Homens Querem Paz, e de lá para cá construiu uma carreira de sucesso nos palcos, no cinema e na televisão. Na próxima terça-feira, ela retorna à telinha em Órfãos da Terra, novela que substitui Espelho da Vida na faixa das 18 horas; também está confirmada no elenco da segunda temporada da série Carcereiros, que estreia em 16 de abril na Globo. Mas não é só isso. Leticia ainda compõe músicas e tem dois projetos com o marido, o ator Fernando Alves Pinto: a banda Caravana Tonteria e a peça A Vida em Vermelho – Brecht e Piaf. E mais: estrela o filme Happy Hour – Verdades e Consequências. Coprodução entre o Brasil e a Argentina, o longa mostra o que acontece quando Horácio (Pablo Echarri), um professor argentino radicado no Rio de Janeiro que fica famoso da noite para o dia, decide pedir à mulher, a deputada Vera (personagem de Leticia), autorização para sair com uma aluna. Na entrevista, a atriz mineira conta que, mesmo depois da fama, pensou em desistir da carreira artística e fala do seu engajamento em causas ambientais e sociais, com destaque para as ações voltadas para a comunidade indígena e o Movimento Sem Terra (MST). 


TELEVISÃO Você está na novela Órfãos da Terra, que estreia na terça-feira na Globo. O que pode adiantar da trama?


Ela faz uma abordagem bonita e curiosa da realidade dos refugiados da Síria. A Duca Rachid e a Thelma Guedes (autoras) são feras. O Gustavo Fernandéz (diretor artístico) e o André Câmara (diretor geral) também são ótimos. A Soraia, minha personagem, participa do começo da história. É a primeira esposa do sheik Aziz Abdallah (Herson Capri) e a preferida dele. O Aziz ama demais a filha que eles tiveram, a Dalila (Alice Wegmann). 


Um dia, promete tirar a Laila (Julia Dalavia) de um campo de refugiados se ela se casar com ele, mas a garota foge para o Brasil na noite de núpcias com o Jamil (Renato Góes), por quem se apaixona. Ele é afilhado do Aziz e estava prometido em casamento para a Dalila. A novela vai mostrar os desdobramentos disso.


Chegaram a gravar na Síria?


Não viajamos para lá. Foi tudo feito aqui mesmo no Brasil, na cidade cenográfica construída nos estúdios da Rede Globo no Rio de Janeiro.


CINEMA Seu mais novo filme, Happy Hour – Verdades e Consequências, é uma coprodução entre o Brasil e a Argentina. O que achou dessa experiência?


O filme tem diálogos em português, mas a narração é em espanhol. Acho o sotaque argentino no cinema muito charmoso, eu e os outros brasileiros da equipe ficamos animados com isso. Admiro não só o modo como os argentinos falam, também gosto da forma como eles fazem cinema.


AMOR No longa, a Vera, sua personagem, tem de lidar com a vontade do marido de abrir o relacionamento. Essa é uma abordagem dos dilemas amorosos que foge do lugar-comum, concorda?


É (risos). A maneira de enxergar as relações, de levar os casamentos, tem mudado e se adaptado bastante. A gente começa a ver que não existe um tipo só de matrimônio, imaculado e certinho, que teoricamente seria o único que daria certo. Não é mais assim. Há várias formas de encontros e arranjos. A questão é o quanto aquilo potencializa ou não as pessoas que estão naquele relacionamento. Hoje em dia, encaro as coisas mais desse jeito. O bom é que o amor gera muitos filmes. Vou te falar que gosto quando a gente faz no cinema essas comédias românticas que questionam as relações e quebram paradigmas. Prefiro bem mais do que aquelas histórias de almas gêmeas que se encontram. Isso está mais difícil de tratar, a não ser que seja como lenda, como um conto de fadas com príncipe e princesa. Considero mais instigante e interessante abordar os relacionamentos com mais pragmatismo e menos idealizações.


Você declarou, recentemente, que, apesar de ter se casado pela segunda vez (com o ator Fernando Alves Pinto), não tem mais uma visão romantizada das relações.


Eu já tive um casamento idealizado (com o ator Ângelo Antônio), mas, realmente, não penso mais assim. Não é fácil manter um casamento, é um processo, sabe? E tenho consciência de que os erros que cometo agora não são mais por idealização. No filme, a Vera é uma mulher que mesmo casada tem a sua voz, o seu espaço, uma independência emocional. Só que ela está às voltas com o desafio imposto pelo marido, de autorizar ou não que ele, um professor, saia com uma aluna. Não sei como eu reagiria diante dessa situação. Acho que, hoje, a gente até se arrisca a outras compreensões dos sentimentos.


ENGAJAMENTO Por ter um perfil atuante e viver envolvida em causas das mais variadas, já teve vontade de se aventurar na política?


Não, porque eu não sou política, me vejo mais como uma atriz, cidadã, diretora e compositora. Talvez cogitasse seguir esse caminho em um futuro distante, se por acaso a vida desse muitas voltas, pois já experimentei tantas coisas... Mas, no fundo, não sinto essa necessidade e não acho que o fato de me posicionar como cidadã e voz pública me transforma numa pessoa para ocupar um cargo administrativo. Sinto mais vontade de exercer o meu papel de artista, que é refletir sobre o que acontece na sociedade. Que histórias vou contar? Aquelas que não têm sentido nenhum? Para a gente propor uma obra e se comunicar com o público, precisa se conectar com ele, ir até a sua intimidade, até os seus desejos e sedes.


De todas as vezes em que se posicionou publicamente, qual foi a experiência mais transformadora?


Fazer o documentário Hotxuá, sobre os índios da tribo krahô, de Tocantins (Palmas), foi algo forte. Também achei transformador conhecer o sul do Pará na época em que o trabalho escravo era muito acirrado; na ocasião, conversei com pessoas que sobreviveram a chacinas, a massacres latifundiários. A maternidade foi outra experiência bastante revolucionária, que me levou para dentro de hospitais e maternidades públicas, para ver, de perto, aquela realidade. Ainda teve a experiência com o MST, o que me permitiu entender a luta das pessoas sem terra. Também foi modificador, neste momento atual do País, enfrentar xingamentos por dizer que penso diferente de muita gente, com relação aos rumos da nossa política. Em uma praça de Curitiba, parei para atender uma senhorinha e pessoas insanas, que aguardavam uma manifestação a favor do impeachment da Dilma Rousseff, deram início a uma gritaria assim que me avistaram. Foi muito duro ver aquilo acontecendo na cidade onde cresci e tenho um apartamento. Estamos em uma época que pede cuidado.


NATUREZA O que você aprendeu com os índios?


A maneira como eles equilibram os opostos no dia a dia e a relação harmônica que mantêm com a natureza entraram em mim. Para você ter uma ideia, se os krahôs quiserem que chova, vai chover. Vivi essa experiência de perto ao gravar o documentário: quando parecia que ia cair a maior tempestade, eles simplesmente diziam que podia ir tranquila, que ia dar tudo certo. Eles têm uma sintonia com a natureza! A gente também pode ser assim. Quando entramos em um estado contemplativo, nos reconectamos com a natureza e encontramos essa sintonia, que faz parte da nossa essência. O problema é que, com essa vida de trabalho que levamos, sem tempo para nada, a não ser para agirmos como engrenagens de uma linha de produção, nossos valores tendem a mudar.


Foi esse contato com os índios que a incentivou a cultivar alimentos orgânicos?


Eu meio que já tinha essa busca. A minha mãe e a família dela vêm da roça. A gente ia direto para a fazenda, e eu sempre gostei muito da terra. Raramente ficava em um lugar fechado, era mais fácil me achar no jardim, brincando embaixo de uma árvore. Ou seja, já tinha um amor pela natureza. Meus pais me ensinaram, desde pequena, a respeitar os bichos, tudo. Em Curitiba mesmo, ainda conheci vários movimentos, ambientalistas e pessoas engajadas que reforçaram essa minha formação.


Ainda possui uma cooperativa de orgânicos?


Não, ela acabou sendo desfeita. Foi uma experiência bem bacana ficar um ano trabalhando com orgânicos. Junto com o pessoal da cooperativa, aprendi demais, fiz cursos e cuidei para valer da plantação.


DÚVIDA Causas como essa fizeram com que tivesse de interromper a carreira de atriz algumas vezes?


Sempre procurei manter essas atividades em paralelo, mas houve uma época em que entrei numa crise e precisei dar uma pausa no trabalho de atriz e ir em tempo integral para a terra. Eu estava questionando tudo, sabe? Achava que havia vaidade demais no meio artístico... Foi um momento meu, em que me plantei de novo, nasci de novo. Cheguei a pensar: “Quero cuidar da comida das pessoas, pois faz sentido fornecer uma alimentação saudável para elas”. Estava vindo de processos que me fizeram desacreditar um pouco na carreira de atriz. Ir para a terra foi bom, me reorganizou. Nessa época, fui rodar o documentário com os krahôs. Aí, o Luiz Fernando Carvalho me chamou para fazer Hoje É Dia de Maria (2005).


Qual foi sua reação inicial ao convite?


Disse para ele: “Não estou muito atriz, nem sei se vou continuar na profissão, porque estou plantando”. Após ouvir tudo o que eu estava vivendo, o Luiz respondeu: “Por isso que você vai fazer Hoje É Dia de Maria”. Ele já tinha pensado em mim para o projeto lá atrás, me mostrou o texto quando estava no começo da carreira. A minissérie foi um processo maravilhoso, que me encheu novamente de ânimo, de energia. Voltei a cantar, o que não fazia há tempo. Fui trabalhar o corpo de novo, estudei mímica, frequentei uma oficina de máscaras. Enfim, retornei ao jeito que era no passado. Em Curitiba, eu vivia dentro do teatro, cantava no Coral Sinfônico do Paraná, tinha uma banda de música, fazia balé. Depois, fui para o Rio de Janeiro e tudo ficou mais profissional, tive filha (Clara, hoje com 26 anos, fruto do casamento com Ângelo Antônio) e me engajei em causas sociais, também como uma forma de responsabilidade, de contrapartida à minha imagem, ao meu trabalho público.


Vai investir mais na música?


Tenho feito várias apresentações com a banda Caravana Tonteria. A gente pretende até gravar um álbum. E estou viajando o país com A Vida em Vermelho – Brecht e Piaf, peça que é puro entretenimento e narra um provável encontro entre a cantora francesa Edith Piaf e o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Há outras experiências musicais: componho algumas letras e, recentemente, participei do Alfarrábio Sonoro, espetáculo superlegal que uniu música, literatura e poesia e que fiz junto com o Lirinha, da banda Cordel do Fogo Encantado, e as cantoras Ava Rocha e Anelis Assumpção.


MOVIMENTO Acha que o MST, ainda mais no Governo atual, é mal compreendido?


Eu acho, porque o pessoal do MST é o povo brasileiro sem condições, sem terra, sem educação, sem saúde, precisando ser olhado. No Brasil, há latifúndios do tamanho de estados, de países. E não estamos falando de terras que pertencem a alguém que vive do que planta. Os donos desses terrenos exploram, usam trabalho escravo. Essas propriedades deveriam servir para a reforma agrária. A luta do MST é histórica, e precisamos de movimentos como esse, que combatam as injustiças que existem no país. As pessoas que são da terra não podem ficar engrossando a criminalidade nos subúrbios. Elas têm que estar na terra, para não virarem indigentes ou criminosos nas cidades. Mas claro que, em meio a isso, também há gente de má índole. Vejo o MST como a pobreza que se organiza para lutar por direitos e promover ações. Só que, como em todo lugar, tem idiossincrasias, erros e acertos. Mesmo assim, é um movimento legítimo e necessário no Brasil.


Destaca alguma ação do MST?


Um bom exemplo é que, antigamente, as escolas rurais usavam as mesmas cartilhas da cidade. Os colégios do MST conseguiram alterar esse formato, deixá-lo mais justo, o que refletiu na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que passou a indicar a educação rural com temas próprios do campo. De que outra maneira combatemos a desigualdade se não for nos organizando e nos capacitando? Os membros do MST estudam a constituição, filosofia, história, muitas coisas. Não há uma lavagem cerebral. O movimento é composto por pessoas que merecem respeito como todos os empresários e demais cidadãos brasileiros.


O que mais a preocupa hoje em dia?


Fico temerosa com a situação do país e do mundo, com a ganância destruindo o que nos resta de reservas/patrimônios naturais e de força moral para lutar contra a raiva, o ódio que segrega e extermina. A falta de solidariedade também me preocupa demais. As pessoas andam muito intolerantes, mas, ao mesmo tempo, há um caldo grosso de bastante humildade, de bastante poesia saindo disso. Tenho visto um monte de gente se reunindo, se posicionando, porque está duro o que elegemos...


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