Febre há décadas, visual de caquinhos continua se reinventando

Tradicionais peças quebradas já chegaram a custar 30% mais que as inteiras. Hoje ainda se vê o estilo em bares santistas e em apostas de arquitetos que unem estilo e consciência ambiental

Por: Sheila Almeida  -  23/02/20  -  17:55
Escadaria de bar santista traz desenho de caquinhos, mas em adesivo
Escadaria de bar santista traz desenho de caquinhos, mas em adesivo   Foto: Matheus Tagé

É difícil encontrar alguém com mais de 40 anos de idade que nunca tenha visto aqueles pisos de peças irregulares, predominantemente vermelhos, com alguns toques amarelos e pretos. Mesmo os nascidos após os anos 1990 já viram (ou fizeram) fotos da icônica Escadaria Selarón, no Rio de Janeiro. O que essas duas referências têm em comum é a aplicação dos caquinhos nos locais – estilo que vem se reinventando e, atualmente, ganha um impulso com seu uso na decoração. Além de reutilizar materiais que iriam para o lixo, a escolha gera economia.


Mas nem sempre foi assim. Para quem não sabe, entre as décadas de 1940 e 1950, os caquinhos já foram mais caros do que peças inteiras. Tudo começou porque, na época, duas importantes fábricas de cerâmicas dominavam as vendas para a classe média. Porém, os operários dessas empresas não recebiam o suficiente para comprar os pisos que ajudavam a produzir. Certo dia, um deles resolveu ficar com as peças quebradas que iam para o depósito. 


Não se sabe exatamente quem fez o primeiro piso de caquinhos, mas é fato que a vizinhança gostou e a classe média começou a se apropriar da novidade, o que virou notícia em jornais. Logo, as fábricas precisaram produzir peças para quebrar, o que as tornava 30% mais caras, devido à escassez. Mas a moda não parou no fim da década de 1950.


Nos anos 90, os pisos de caquinhos ganharam nova história graças a um artista chileno que escolheu o Rio de Janeiro para morar: Jorge Selarón. Ele resolveu revestir a escadaria da porta de sua casa com caquinhos vermelhos e nas cores da bandeira do Brasil. Em seguida, cobriu todo o conjunto de degraus da escadaria do Convento de Santa Teresa, entre os bairros cariocas de Santa Teresa e Lapa, e fez fama.


Aqui em Santos, o Qualéh O Bar, que abriu as portas em dezembro, reproduziu o estilo, já que a casa é inspirada nos bares cariocas, como conta o empresário Bruno Pascale, um dos proprietários. 


“A ideia da escadaria, que já virou um local superdisputado pelos clientes para tirar fotos, veio pelo fato de o pé-direito da casa ser bem alto. A gente queria fazer uma escada larga e imponente. E como o tema do bar é Rio de Janeiro, nos inspiramos na Escadaria Selarón, ponto turístico conhecido internacionalmente”, diz. 


Parece, mas não é


Só que no bar santista, o caquinho não é caquinho. Como um dos donos de lá tem uma empresa de comunicação visual, desenvolveu diferentes artes em adesivo para a escadaria – o que ressaltou o estilo sem exigir quebra-quebra.


Vanessa Vellani executou a própria parede de caquinhos, em degradê.
Vanessa Vellani executou a própria parede de caquinhos, em degradê.   Foto: Arquivo Pessoal

Vanessa Vellani, arquiteta da Ella Arquitetura, também encontrou um uso diferente para as sobras de revestimentos cerâmicos vindas da obra que fez em seu escritório na Cidade. Em vez de combinar os tradicionais caquinhos vermelhos, amarelos e pretos, que, na década de 50, fizeram muito sucesso, ela preferiu utilizá-los nas cores branco e cinza.


“No meu caso, a escolha foi pela criatividade e reciclagem do material que tinha à disposição. Fiz um degradê, do cinza subindo para o branco”, conta a profissional que não só projetou como executou a parede de seu escritório.


Segundo a arquiteta, a história já provou o quanto os caquinhos são versáteis. Alternativa mais econômica, lembrando o estilo do mosaico português das calçadas, até hoje são utilizados no chão ou na parede, em qualquer ambiente, brincando com o rústico, mesmo num espaço mais refinado. 


“Fica muito legal ver caquinhos em objetos de decoração, na parede perto de um banco de demolição ou combinados com plantas em áreas externas ou internas, como no meu projeto. Do lado de fora da casa, jardins podem ser valorizados com um caminho de caquinhos”.


Escolha responsável


Geórgia Linhares Martins, da Casa do Arquiteto, destaca que apostar nos caquinhos, de qualquer tipo, é mais do que uma opção por estilo. Trata-se de uma busca pela sustentabilidade na obra, já que, em vez de descartar sobras e comprar mais peças, reutiliza-se o que já existe no lugar.


“É sustentável mesmo. Pense no refugo do mármore ou da cerâmica. Você acaba dando reutilização a essas peças, poupando o meio ambiente e ainda remetendo à memória afetiva”, observa.


Quem não gosta da aparência dos caquinhos ainda tem como recurso sustentável peças industrializadas baseadas nos caquinhos, como explica a designer especialista em superfícies Nathaly Domiciano.


“O que mais existe hoje é a ressignificação do caquinho. Muita gente conhece a história, mas o que poucos sabem é que, hoje, as empresas já estão fazendo releituras, no granilite”, conta a profissional, sobre um material que mistura fragmentos de mármore, granito, vidro, quartzo e mais sobras, numa liga cimentícia ou de outros materiais. O resultado final é visto depois do polimento.


Segundo Geórgia Martins, tudo o que pode ser cimentado, pode receber caquinhos. O que se deve levar em conta, antes do início da troca de um piso ou revestimento por caquinhos, é a altura do material trabalhado. 


“Se você usar caquinho de granito ou mármore no chão, por exemplo, precisa lembrar da altura que vai ocupar, para não atrapalhar a abertura das portas e passagens”.


Vanessa Vellani acrescenta que, de resto, é só botar a mão na massa ou argamassa, pois, com um pouquinho de vontade e dedicação, qualquer casa pode ganhar um canto charmoso, autoral e único.


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