Escola de surfe adaptado de Santos é pioneira e ajuda a transformar a vida dos alunos

Conheça as histórias inspiradoras de três aprendizes. Projeto se tornou referência ao redor do mundo

Por: Joyce Moysés  -  27/09/20  -  14:40
João Vitor tem autismo. O surfe o ajudou a desenvolver habilidades
João Vitor tem autismo. O surfe o ajudou a desenvolver habilidades   Foto: Foto Matheus Tagé

“A sensação de subir pela primeira vez numa prancha é indescritível”, conta Jenifer Pavani Ribeiro, de 39 anos, deficiente visual. “Saber que existia deficientes surfando reacendeu um sonho que eu tinha desde criança; e o esporte dá autoconfiança para vencer mais desafios na vida”, diz Sara Neves Macedo, de 30 anos, que tem Lesão Total de Plexo Braquial. “Meu filho evoluiu demais na parte motora, fala, sociabilização e confiança (passou a dizer “eu consigo” em diversas situações) e tornou-se mais alegre...”, avalia Adriana Xavier de Souza, mãe do João Vitor, de 12 anos, que é autista.


Neste Setembro Verde, mês da inclusão social da pessoa com deficiência, celebramos cinco anos da implementação da Lei da Inclusão no Brasil. De acordo com dados do Censo IBGE 2010, 526 mil pessoas na Baixada Santista declararam ter alguma deficiência. Isso representa cerca de 30% da população da região metropolitana e abrange dos níveis leve a severo de deficiência visual, motora, auditiva, mental e intelectual.


Desse total, 23% apresentam alguma dificuldade (leve ou moderada), 6% têm comprometimento da deficiência elevado e 1% não consegue ouvir, enxergar ou se mover. Esses 7% equivalem a 131.494 pessoas com deficiências graves e diversas de Bertioga a Peruíbe. Portanto, é de suma importância haver políticas públicas inclusivas e com o envolvimento do setor privado nas ações.


Iniciativa transformadora


Um exemplo de projeto bem-sucedido de inclusão é a Escola Radical de Surfe Adaptado, inaugurada em janeiro de 2020, no Posto 3, na Praia do Gonzaga, que conta com o patrocínio da Blue Med Saúde e é coordenada pelo consagrado surfista Cisco Araña, de 62 anos.


A unidade vem figurando como referência a outros países da América do Sul e Europa, além de cidades do Litoral Paulista - caso do projeto Surf Special, na vizinha Guarujá, coordenado por Iara Stella e também patrocinado por essa empresa de plano de saúde.


A inclusão de pessoas com deficiência é um dos principais projetos de responsabilidade social que a Blue Med Saúde desenvolve em apoio ao poder público local. A empresa viabiliza os recursos humanos e materiais para o funcionamento completo da estrutura.


Nas palavras de seu diretor comercial e de marketing, Rogerio Martins: “No mar, as pessoas com deficiência exercem um protagonismo que jamais sonharam experimentar. É uma satisfação ímpar apoiarmos políticas públicas inclusivas e eficientes que entregam qualidade de vida, saúde, bem-estar e felicidade. Queremos que as pessoas vivam cada vez mais e melhor!”


Pranchas especiais


Cisco tem cinco décadas dedicadas ao esporte e é o idealizador da primeira escola pública de surfe, no Posto 2, e dessa escola de surfe adaptado no Posto 3. Levou dez anos observando para desenhar a prancha adequada aos deficientes visuais, lançada em 2006, e mais oito anos para lançar a multifuncional, direcionada a deficiências diversas, em 2014.


Mais de 380 pessoas já participaram dos programas em Santos e 100 no Guarujá, unidade apadrinhada por Cisco. “Santos foi pioneira na idealização de uma escola pública de surfe, 30 anos atrás. Com as novas demandas, esse atendimento foi sendo segmentado. O interesse das pessoas com deficiência aumentou, e tivemos que nos estruturar melhor e nos reinventar. A inovação com as pranchas nos habilitou a ganhar uma escola exclusivamente dedicada ao surfe adaptado. A iniciativa vem ganhando o mundo, e o modelo já nos consolida como uma cidade inclusiva. Além disso, é um projeto bem-sucedido de parceria público-privada, referência na prática de modalidade esportiva”.


O maior retorno vem na forma de histórias de superação, que carregam ensinamentos e agregam lições de vida à sociedade como um todo.


Sara, que tem Lesão Total de Plexo Braquial, realizou sonho e ganhou autoconfiança
Sara, que tem Lesão Total de Plexo Braquial, realizou sonho e ganhou autoconfiança   Foto: Foto Matheus Tagé

A motivação de Sara


“Eu sempre tive vontade de aprender a surfar, mas quando sofri o acidente de moto, aos 26 anos, achei que teria de riscar esse sonho da minha lista. Até que pesquisei e constatei que havia deficientes ‘pegando ondas’. Fui atrás de alguém que pudesse me treinar, mas ouvia ‘é difícil’, ‘eu não tenho conhecimento suficiente para isso’”.


Quando Sara soube da possibilidade de ter uma escola de surfe adaptado, foi logo se inscrever. Ela é formada em Administração de Empresas com ênfase em Marketing e moradora de Praia Grande, que perdeu a mobilidade do braço direito devido à Lesão Total de Plexo Braquial, causada por um acidente de moto três anos atrás.


Sara é atleta de natação paralímpica pela Associação Paradesportiva do Litoral Paulista (APLP) e aluna da Escola de Surfe Adaptado de Santos, assim com Jenifer e Vitor. Começou fazendo aulas todas as quintas, e pretende aumentar para duas vezes por semana nessa retomada pós-quarentena. “O esporte diminui a dor crônica e dá qualidade de vida, entre tantas coisas boas”, diz.


A administradora sugere a quem quiser surfar para começar e acreditar. “Todo mundo tem suas dificuldades, e ninguém é autossuficiente; precisa de ajuda para alcançar algo, e está tudo bem”, afirma. Agora, o risco deve ser calculado, sendo importante procurar professores capacitados no esporte e para lidar com as deficiências, que estudem e saibam o que estão fazendo. “Para proteger a nossa vida, o nosso corpo, e também nos motivar ainda mais. Caso contrário, a gente vai se dar por vencido e desistir”.


A família do coração de João Vitor


“Os professores do surfe adaptado são verdadeiros anjos na vida dos pais que têm crianças especiais. Meu filho pode estar passando mal em casa, mas sabe o horário exato da aula e quer ir. A equipe do Cisco é a nossa família de coração, pelo vínculo de carinho criado conosco, acolhendo a todos os envolvidos”, complementa Adriana.


Cinco anos atrás, essa mãe andava pela praia quando viu, no Posto 2, cadeirantes praticando surfe e foi saber como incluir o filho no esporte. Com 7 anos, João Vitor não fazia contato visual com ninguém e não gostava de ser tocado e nem de ter contato com pessoas de fora da família, tampouco falava (mesmo fazendo sessões de fono). Não molhava a cabeça de jeito nenhum, sentia agonia. Pois os professores levaram mais de dois meses para conseguir contato visual e evitaram em especial algo que o autista odeia, que é o barulho. Também conseguiram que começasse a gargalhar, que desse a mão para surfar e responder “vamos” ao chamado deles para entrarem na água.


“Hoje, ele fala pelos cotovelos; quer contar, ensinar às pessoas como ficar em pé na prancha, como remar e outros aprendizados que teve com os tios do surfe. Já consegue pegar onda sozinho, em pé; está mergulhando; e, claro, vem sentindo muita falta de tudo isso por causa da pandemia e não vê a hora de voltar à sua atividade preferida”, relata a mãe, acrescentando que o restante da família mudou os horários para participar também.


Jenifer, que tem deficiência visual, superou medos e já ficou sozinha na prancha
Jenifer, que tem deficiência visual, superou medos e já ficou sozinha na prancha   Foto: Foto Matheus Tagé

A esperança de Jenifer


Outra aluna dedicada é a Jenifer, moradora de Santos e funcionária da Prefeitura de Santos, trabalhando desde janeiro para a Escola de Surfe Adaptado de Santos. Por complicação da Diabetes Mellitus, há cerca de 15 anos não enxerga com o olho esquerdo e só 8% com o direito.


“O médico me dava 99% de chance de não perder a visão fazendo a cirurgia, na qual entrei tendo 70%, mas o resultado foi bem diferente. Logo depois, prestei concurso público e passei”.


Amante do esporte, Jenifer foi velocista durante três anos, defendendo a cidade de Santos em diversas competições, mas sentia dificuldade para correr por sofrer de bronquite asmática. Quando trabalhou no Centro de Memória Esportiva De Vaney, conheceu Cisco, que lhe mostrou ser possível surfar - mesmo com ela achando que seu equilíbrio e sua coordenação motora estavam prejudicados devido à sua deficiência.


“Levei sete anos para sair na rua sozinha por não me adaptar à bengala, imagine! Eu achava que ia cair da prancha o tempo todo. A princípio, senti muito medo. Mas, depois que entrei na água e contei com o suporte de uma equipe especializada e dedicada, ganhei segurança e fiz movimentos até então inacreditáveis. Na última aula antes de eu sair de férias, surfei sozinha. Foi grandioso”, relata a aluna, que decidiu integrar a equipe em 2019 num momento difícil de sua vida. “Eu havia acabado de perder meu pai, e estar num lugar realmente inclusivo foi um sopro de esperança”.


Jenifer ressalta que todos nós temos vários medos, e enfrentá-los é necessário. “Ainda mais tendo por perto profissionais nos transmitindo essa confiança e também amor. Se eu puder deixar uma mensagem às pessoas, deficientes ou não, é esta: não permita que ninguém coloque limites na sua vida. Tente, pois é possível ir muito além do imaginável. Mesmo se não der certo, não terá do que se arrepender”.


No presente e futuro breve


Por causa da pandemia, os professores adotaram videoaulas (canal do YouTube Surfe Sênior), possibilitando que os alunos, com acompanhamento dos pais, permaneçam em movimento por meio de exercícios de alongamento, mobilidade e flexibilidade, fortalecimento muscular, treinos de subida e tipos de remada, meditação e diversas outras dicas.


A segunda quinzena de setembro marca a volta gradativa das atividades presenciais, inicialmente com um grupo reduzido de até oito alunos, portadores de deficiências mais leves e com alguma autonomia dentro do mar, a fim de a escola dar um atendimento mais individualizado e espaçado.


Com o propósito de expandir tais ondas de amor e autoconfiança, Cisco conclui com esta excelente notícia: “De forma gratuita já estamos formando agentes multiplicadores do surfe inclusivo em todo o litoral brasileiro, América do Sul e Europa. É uma conquista para as pessoas com deficiência, reflexo de uma gestão pública inclusiva”.


O surfista compartilha a experiência das pranchas adaptadas por meio do projeto Sonhando sobre as Ondas, cujo objetivo é promover workshops de capacitação e viabilizar a doação de pranchas a diversos estados e cidades brasileiras, além de países como Espanha e Uruguai. Sonhando sobre as Ondas tem o apoio do Rotary Clube (Santos-Praia e Satélite Santos-Praia).


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