Entrevista: Neurocirurgião lança livro sobre as experiências de quase morte

Edson José Amâncio, que também é escritor, explica como elas ocorrem e quais as principais evidências científicas

Por: Ivani Cardoso  -  13/06/21  -  17:30
  Live de lançamento do livro será na próxima quinta (17), às 18 horas
Live de lançamento do livro será na próxima quinta (17), às 18 horas   Foto: Divulgação

Situações-limite entre a vida e a morte podem provocar vivências mentais que sugerem a passagem para um outro plano, espiritual? A busca inicial por respostas para essa pergunta começou em 2005, quando o neurocirurgião e escritor Edson José Amâncio leu na revista médica inglesa The Lancet um estudo do holandês Pim Van Lommel, publicado em 2002, no qual ele relata 344 casos de Experiências de Quase Morte, minuciosamente documentados em hospitais de seu país.


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Surpreso por uma publicação científica de renome abrir espaço para esse tema, Edson acabou se dando conta da janela que se abriria na pesquisa médica caso o assunto continuasse sendo analisado com o mesmo interesse científico de Van Lommel e de sua equipe.


Envolvido por muitas dúvidas e explicações variadas sobre a relação mente, cérebro e consciência, o neurocirurgião debruçou-se sobre a literatura estrangeira e, diante das situações trazidas ao seu consultório, aliou-se a outros pesquisadores para estudar os casos no Brasil. Desde então, ouviu dezenas de relatos documentados com precisão em conjunto com o físico Carlos Mendes, idealizador do Canal de YouTube Afinal, O Que Somos Nós? Isso resultou no livro Experiências de Quase Morte (EQMS) – Ciência, Mente e Cérebro, cuja live de lançamento será no canal da Unibes Cultural na próxima quinta (17), às 18 horas.


Na apresentação da obra, o neurocientista e escritor Sidarta Ribeiro diz que há inúmeras possibilidades para explicar o mistério que cerca as EQMs, inclusive as não materialistas: “O livro não descarta nenhuma delas, pois seu autor compreende que a curiosidade científica e a tolerância cultural são as melhores atitudes diante de um enigma tão profundo”. Mas, afinal, a consciência sobrevive à morte? Mesmo que você não acredite na vida após a morte, vale a pena conferir a entrevista abaixo com Edson José Amâncio.


Processo


O que são as experiências de quase morte?


Tratam-se de experiências vívidas, realísticas, que muitas vezes promovem profundas mudanças de vida. Elas ocorrem com pessoas que estão fisiológica ou psicologicamente próximas da morte. Tais experiências podem ser provocadas por paradas cardíacas e por comas causados por dano cerebral, asfixia ou hemorragia, que acontecem durante o parto, em um acidente de trânsito e até em cirurgias nas quais o paciente se encontra sob anestesia geral. O fato de que essas pessoas “retornaram à vida” indica que elas não estavam mortas de fato, mas que desenvolveram, durante um período, uma consciência ampliada, à qual nenhum ser humano poderia ter acesso durante o estado normal de funcionamento cerebral.


Quais as certezas que ficam depois de tantos estudos?


Em primeiro lugar, tem a absoluta convicção de que as EQMs existem e são um fenômeno universal, embora não ocorram em todas as pessoas próximas da morte. Em segundo lugar, fica a certeza de que a morte, pelo menos para quem passou por uma EQM, não é um fenômeno assustador, irremediável e trágico, como estamos acostumados a pensar.


Quantas pessoas foram ouvidas?


Cerca de 150. Nem todos os casos foram relatados no livro. Procurei citar os mais emblemáticos das nossas entrevistas e os relatados na literatura sobre o tema que consideramos mais interessantes. Por exemplo: não falamos com nenhum cego congênito que teve EQM. A entrevista com uma pessoa cega de nascimento, que passou a ver durante a EQM, é algo muito envolvente. Por isso, citamos caso descrito por outros pesquisadores (Kenneth Ring e Sharon Cooper).


E quais são os pontos em comum nos relatos de quem teve uma EQM?


Há muitos pontos em comum: o fato de saber que está morto; ver uma luz brilhante, às vezes a passagem por um túnel; vivenciar uma memória involuntária do nascimento até o momento da quase morte; sentir amor e a sensação de comunhão com o universo; ter uma consciência ampliada, muito mais do que quando se estava no corpo. Todos usam a expressão inefável, ou seja, não existem palavras para descrever tudo o que se vivencia. Muita gente diz que não teve vontade de voltar à vida.


Há uma explicação científica para esses estados?


Até o momento, não há uma explicação científica definitiva. Foi interessante entender o papel que o DMT (dimetiltriptamina) poderia exercer nos fenômenos descritos. Essa substância é produzida no cérebro, no pulmão e no fígado. O que se sabe é que a concentração dela aumenta muito na circulação de pacientes próximos da morte. E ela é uma droga dez vezes mais alucinógena do que o LSD, que é uma droga sintética. O DMT também é achado nas plantas, na ayahuasca, usada em rituais indígenas em toda a América do Sul. Purificada é uma droga altamente alucinógena.


Há experimentos laboratoriais que usam DMT injetável em voluntários sadios. Muitos tiveram experiências parecidas com EQM. Nenhum dos argumentos eventualmente utilizados para explicar as EQMs resiste a uma menor abordagem científica. Por exemplo: falta de oxigênio, negação psicológica da morte e drogas que costumam ser usadas em anestesia geral.


Distinção


Você encontrou ligação entre as religiões e as EQMs?


O meu trabalho não teve viés religioso. Não pretendemos com esse estudo provar que existe vida após a morte, embora a maioria dos pesquisadores sobre o tema tenha concluído que sim. Minha conclusão é que existe um fenômeno que ocorre na hora da quase morte e que é muito rico, sobre o qual as palavras principais relatadas por todos são amor, infinito, indescritível. Todos que a têm perdem completamente o medo da morte. Lamentavelmente, isso despertou pouco interesse nas pesquisas médicas. Do ponto de vista científico, pode ser um alento, mas não é uma comprovação.


Quanto à religião, procurei separar os dois magistérios. Uma das proposições do paleontólogo Stephan Jay Gould é que há dois magistérios não interferentes: o da religião e o da Ciência. Um não deve interferir no outro. Ele cita dois bons exemplos. Um é Tomé dizer: “Só acredito que Cristo ressuscitou se eu colocar o dedo nas suas feridas”. Essa é uma observação boa para um cientista – se Tomé estivesse agindo no magistério da Ciência –, mas errônea, pois ele estava mergulhado no magistério da religião. O segundo exemplo vem dos cristãos radicais nos EUA que querem impingir o criacionismo nas escolas públicas americanas. São religiosos querendo interferir na Ciência, ignorando todo o conhecimento adquirido sobre a evolução, depoisde Darwin.


Logo, adotei essas premissas. Não dei nenhuma interpretação religiosa à pesquisa, ainda que a maioria das pessoas que experimentaram EQM, mesmo agnósticas, acabou se tornando de algum modo religiosa.


E você mudou após a pesquisa?


Não creio que tenha ocorrido uma mudança substancial em mim. Mas não posso negar que, depois de tudo, foi uma enorme alegria constatar pessoalmente o que eu conhecia apenas por informações ocasionais. Além do que é sempre uma grande satisfação ver que um trabalho de pesquisa, que levou tanto tempo para ser concluído, possa contribuir para esclarecer que a realidade da proximidade da morte pode ser um alento, e servir também para que nós, médicos, tenhamos observação mais acurada e sem preconceitos dos pacientes em coma ou à beira da morte.


Qual é a reação esperada dos médicos quanto a uma pesquisa sobre EQM?


Creio que já há uma aceitação mais razoável de muitos médicos, ainda que existam céticos militantes. O médico foi educado para diagnosticar, interpretar, tratar e, quando possível, curar. Nenhuma faculdade de Medicina aborda o tema que tratamos aqui. Não há uma disciplina que fale em EQMs. Logo, não podemos criticar os céticos. Não tenho receio das críticas, apenas recomendo que as pessoas procurem ampliar o seu conhecimento nesse tema – praticamente relegado ao ostracismo nos currículos médicos.


Acessível


Mesmo sendo um tema científico, o livro tem linguagem clara para leigos. Como dosou isso?


Faz muitos anos que entendo que o conhecimento científico, particularmente o médico, não deve ficar restrito às quatro paredes da universidade. Tanto quanto for possível ele deve ser divulgado. Nesse sentido, eu colaborei inúmeras vezes com artigos de divulgação científica em revistas especializadas, como Mente & Cérebro e Scientific American Brasil. De tal forma que tive um treinamento prévio para escrever sobre Ciência com linguagem que se mostra ao alcance de pessoas não necessariamente afeitas à área.


Espectador


Você gostaria, por acaso, de passar por uma EQM?


Segundo creio eu, como a maioria das pessoas, não gostaria de estar à beira da morte, que é o pré-requisito para se ter uma EQM. Mas ouvir todos os relatos me deu a convicção de que, quando a hora chegar, haverá motivos para comemorar.


O que mais o surpreendeu nos relatos que escutou?


Me surpreendi com as EQMs fora do corpo: a pessoa contemplando o próprio corpo, dilacerado num acidente automobilístico, ou com o tórax aberto numa sala cirúrgica, mostrando-se só uma espectadora daquele procedimento. Qualquer indivíduo consciente, durante um acidente, ainda que não tão grave, tende a ficar assustado, apavorado. Alguém não habituado ao ambiente cirúrgico, ao ser colocado para assistir a uma cirurgia cardíaca ou neurológica, se não tiver um bom controle emocional, pode desabar.


Portanto, como é que alguém que sofreu uma dessas intervenções pode ser apenas um espectador? Eu imaginava que alguém fora do corpo ao se ver dilacerado ficasse apavorado. Mas isso não acontece, o que é realmente surreal. Já o segundo ponto surpreendente é o filme que todos alegam ter visto, a memória involuntária, na qual recordam sua vida, do nascimento até a hora da quase morte. Como isso pode ocorrer? Nossa memória voluntária pode remontar até os 10 anos de idade, 8, talvez 6. Mas ir do nascimento à morte é algo realmente inexplicável. Chamei esse momento da EQM de momento proustiano. Há poesia aí também.


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