Como a ditadura da felicidade controla nossas vidas

Como item de primeira necessidade, ela está em várias formas

Por: Por Alcione Herzog  -  11/04/21  -  16:39
Auto-conhecimento ajuda a encontrar o caminho do equilíbrio
Auto-conhecimento ajuda a encontrar o caminho do equilíbrio   Foto: divulação

Para onde quer que se olhe ela está lá, a venda, como item de primeira necessidade. Se expressa nos produtos para emagrecer, nos suplementos para alcançar a barriga tanquinho, no pacote de viagem para o pós-pandemia, nos cremes pró-age para suavizar linhas de expressão ou no curso que promete te transformar no empreendedor do ano.


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Inalcançável, a ‘felicidade’ refletida nas coisas e ‘fabricada’ pelo outro também povoa as redes sociais como item obrigatório para validar a vida. Nas vitrines compactadas em telas ficam expostos sorrisos de comercial de creme dental, com direito aos filtros mais surpreendentes. Nestas realidades paralelas, mudam os perfis ao toque dos dedos, mas uma coisa nunca muda: a sensação de que o cenário do colega virtual é sempre o mais impressionante. Seja no Instagram ou no Facebook, as praias mais lindas, as comidas mais gostosas, as companhias mais agradáveis, as famílias mais bem constituídas e as melhores roupas desnudam nossa insatisfação com uma vida comum e sem graça.


De repente, você acorda de mau humor e o que antes era inspiração ou admiração, vira motivo de irritação e angústia. Em alguns casos, a palavra certa é opressão. Em vem a pergunta: ‘Por que a vida deles é tão interessante e emocionante e minha, não?’.


Para a psicóloga Roselene Espírito Santo Wagner, a resposta é simples. Se você enxerga alegria e prazer apenas no que não tem e no que não é, você vive sob o perverso regime da “ditadura da felicidade”.


Nesse regime, quem manda são os padrões estabelecidos pela sociedade de contemporânea, diz Marcela Brito, treinadora de mentores da Global Mentoring Group. Sentimentos como tristeza, medo, insegurança são sinônimos de fracasso e incapacidade. Fica proibido sentir solidão, ansiedade ou desânimo. As palavras de ordem são ‘querer é poder’ e você, que tanto quer ser feliz, sente-se frustrado com o fato da receita de sucesso não surtir efeito. “Muitos especialistas chamam esse fenômeno de positividade tóxica”, classifica a Marcela.


“Nem todos os sentimentos que temos são agradáveis. Nem por isso são desnecessários. Os ditos sentimentos ruins fazem parte da vida. A gente precisa respeitar e aceitar. A partir do momento em que desenvolvemos autoconhecimento, podemos saber como passar por esses momentos mais difíceis e até como tirar aprendizados”, resume a psicóloga Larissa Costa.


Ela alerta que condicionar a felicidade pelo que se vê na vida dos outros é um erro. “Até porque sabemos que, no fundo no fundo, mesmo quem está todos os dias celebrando na internet tem seus dramas pessoais e questões a superar. Por isso, buscar ser feliz por meio de comparações não é o caminho”, ressalta.


Nesse contexto, uma pergunta se impõe: por que é tão difícil não se deixar levar pelos padrões sociais de felicidade impostos nas mais diversas áreas, como estética, renda, família, carreira etc?


É simples. “Somos indivíduos relacionais, portanto, seres paradoxais. Somos inteiros mas, emocionalmente, guardamos o registro do desamparo e a necessidade extrema do outro. A gente cresce na esfera do olhar do outro. Somos espelho e reflexo o tempo todo. É o outro quem me diz e me certifica da minha importância na condição humana. O outro me dá conceitos, me rotula de coisas que eu apenas intuo, mas a certificação parece vir sempre do meu semelhante”, diz Rosilene.


É aí que a ditadura da felicidade se estabelece. Ela encontra um campo ainda mais fértil na vida digital por esta ser um ambiente mais parecido com um palco, onde, segundo a psicóloga, só se pisa com a devida edição da imagem. Luz e cenário precisam estar perfeitos. As palmas - ou curtidas - são muito esperados e quando não acontecem sinalizam o fiasco do espetáculo. “Mas a vida real tem seus bastidores. É por trás das cortinas que a vida acontece. Os filtros distorcidos da redes sociais distorcem também a percepção do mundo real. A fragilidade humana existe com suas dores, lutos, vulnerabilidades, doenças, envelhecimento e finitude. Se enganam e sofrem muito mais os que negam essas verdades que nos caracterizam como espécie humana”, explica a especialista.


Para ela é um tipo de auto-opressão a obrigatoriedade de parecer bem sem estar verdadeiramente contente. A ditadura da felicidade é despótica porque impõe essa meta inalcançável de estar sempre no pódio, em primeiro lugar. “Somos feitos também de vicissitudes. Somos um conjunto mutável. Nós não somos, nós estamos. Estamos jovens e vamos envelhecer, estamos saudáveis e vamos adoecer, estamos aqui e não mais estaremos”, enfatiza.


Conforme Rosilene, lidar com as mudanças é saudável e extremamente humano. Encerramos ciclos para a abertura de novas etapas. Somos filhos do tempo, estamos sob os ditames da natureza como ser vivo, marcados pela finitude.


Também não adianta tentar sempre corresponder às expectativas alheias. Essa lição a fisioterapeuta e professora de Yoga Nathalia Martins Arias, de 31 anos, aprendeu muito bem. Ela afirma estar na fase mais feliz de sua vida e que chegar a esse lugar tão desejado por muitos exigiu olhar para dentro.


Aparentemente, a jovem tinha uma vida perfeita. A carreira como fisioterapeuta e professora de pilates estava indo muito bem. O patamar financeiro estável foi o fruto de anos investidos na formação acadêmica e em outros cursos. No entanto, nos últimos anos, a profissão não lhe completava. “O meu propósito sempre foi o de ajudar os outros. Esta é minha essência. Eu sentia que a fisioterapia e o pilates ajudavam as pessoas, mas de forma limitada. Percebi que a maior parte dos meus alunos tinha dores físicas decorrentes de causas emocionais. Me sentia limitada em tratar essas causas. Depois que fiz um curso de Yoga descobri a ferramenta que estava faltando para ajudar a tratar essas causas”, conta.


O problema então passou a ser outro: largar uma área consolidada e estável financeiramente e partir para algo incerto. Por algum tempo, Nathalia tentou conciliar as duas coisas. Mas isso a deixou mais cansada e estressada. Veio a pandemia e com a pausa nos atendimentos a professora aproveitou para se


preparar para a transição. “Hoje estou me dedicando só às aulas de Yoga, inclusive com o auxílio das plataformas virtuais”, comemora, frisando que se desse ouvidos às pessoas ao redor, provavelmente não teria tido a coragem de mudar.


“Nos apegamos à imagem falsa que temos de nós mesmos e no que os outros esperam de nós. Esses apegos são irreais. Ser feliz é ter a coragem de descobrir o que nos faz bem de fato e não levar a vida no modo automático. Ter paz é não ficar tentando reproduzir os padrões de sucesso que a sociedade impõe só para não sermos julgados. Enfim, é descobrir o que faz sentido para nós. O caminho do Yoga é poderoso para esse autoconhecimento”.


Larissa Costa caminha na mesma lógica e dá a regra de ouro: a felicidade só pode estar em nós. “Se a gente coloca tudo na mão do outro, no emprego ideal, no relacionamento dos sonhos, nos nossos filhos ou em qualquer outra coisa externa, a probabilidade de experimentarmos frustração é gigante, pois não conseguimos controlar todas essas coisas o tempo todo. A vida sempre vai ter altos e baixos. A gente só consegue controlar como reagir às situações, às ações dos outros. Mas nunca teremos o poder real de controlar o que está fora”.


Além de assimilar que viver é movimento e que esse movimento é marcado por constantes mudanças, também vale lembrar que ninguém consegue sorrir e ser positivo 100% do tempo. Esta é outra ilusão. Segundo especialistas na psique humana, é fundamental desenvolver a equanimidade.


Trocando em miúdos: está tudo bem com quem não consegue ser sempre a pessoa mais otimista em contextos como, por exemplo, a aumento de mortes em decorrência de uma pandemia. O importante é reconhecer esse sentimento de pesar e resignificá-lo. Transformar a lamentação em empatia e depois em ação é uma das possibilidades.


“Podemos e devemos vibrar alguns tons abaixo da euforia. Elaborar nossas perdas, experienciar nossos lutos e emoções negativas são importantes justamente para nos dar o ponto de referência de momentos bons. Dias bons existem, mas passam. Dias ruins acontecem da mesma forma e se vão. Tudo deve ser transformado em lição, aprendizado. A memória nos serve para armazenar experiências e referências para novas posições e situações na vida”, complementa Rosilene.


E a Marcela Brito arremata, dizendo que se não lidamos com nossas sombras, em algum momento elas podem acabar nos prejudicando, nos sabotando. Se nos colocamos o tempo todo como indivíduos realizados e felizes, negligenciando os sentimentos ditos negativos, não nos damos a oportunidade de entender e identificar quais são nossas fragilidades, nossos pontos obscuros. “Consequentemente, isso nos impede de abrir caminho para o desenvolvimento e evolução. Não permite os ciclos positivos de compartilhamento de experiências para que outras pessoas vejam que ninguém é e nem precisa ser perfeito”, finaliza.


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