Boicotado ou absolvido?

A cultura do cancelamento está fazendo com que mais e mais pessoas, conforme suas atitudes e opiniões, tenham de passar pelo “tribunal virtual”

Por: Joyce Moysés  -  02/03/20  -  15:02
  Foto: Adobe Stock

O ser humano chegou a 2020 podendo ter 1 milhão de amigos e até mais, graças às redes sociais, mas podendo também ser “cancelado” da vida deles a qualquer momento como protesto às suas atitudes e opiniões. O termo “cancel culture” foi eleito por linguistas, especialistas e teóricos selecionados pelo dicionário australiano Macquarie como palavra do ano, capturando o seu destaque no estilo de vida das pessoas em 2019.


Significa sofrer boicote por grupos de usuários das redes sociais caso se diga ou faça algo que eles considerem moralmente errado, gerando uma espécie de linchamento virtual. Para dar dois exemplos recentes: um foi com a atriz Alessandra Negrini, que acabou acusada de apropriação cultural por desfilar de índia em um bloco de Carnaval; e o outro, com o jornalista Pedro Bial, que criticou o documentário Democracia em Vertigem, concorrente brasileiro no Oscar 2020. Alessandra alegou que recebeu autorização de indígenas. Já Bial respondeu: “É com a carcaça moída e esfolada de 
tanta pancada virtual que venho a público acenar: bandeira branca. Amor. Eu peço paz...”.


Famosos na mira. Está fácil achar um novo cancelado a cada dia entre os famosos. Já foram alvos desse tipo de campanha, que abrange de ataques verbais e memes até a solicitações para que seus seguidores os abandonem: Faustão, Nego do Borel, Silvio Santos, Chay Suede, Anitta... 


Entre as celebridades internacionais: após polêmica por tuítes homofóbicos, o comediante Kevin Hart não subiu ao palco do Oscar 2019 porque foi “cancelado”; o youtuber sueco PewDiePie foi rejeitado por comentários racistas, mas o seu canal continua lá no topo em números de inscritos.


Isso mostra que os efeitos podem ser maiores ou menores, conforme cada caso. Uma coisa é certa: essa prática de apontar o erro e querer punição existe na sociedade desde antes da internet, mas é ampliada pelas novas formas de participação nas discussões sociais, como analisam os psicólogos.


José Roberto Chiarella, advogado e coordenador do Colégio Objetivo Baixada Santista na cadeira de Cidadania e Formação para a Vida, acha no mínimo curiosa essa situação. “Com o advento das redes sociais, agora o ‘tribunal’ está estabelecido, só que, via de regra, sem obedecer os princípios do contraditório ou da ampla defesa. O julgamento é até cruel”, opina, acrescentando que essa é uma preocupação educacional, “pois as relações andam desumanizadas, e crianças e jovens não podem ser atingidos por essa ‘cultura’ do desapego e desafeto”.


O alvo inicial são os famosos, como influenciadores digitais e artistas, mas o advogado crê que esse “tribunal” informal das redes sociais poderá impactar pessoas comuns, isolando-as por pensar ou agir diferentemente daquilo que o outro acha que é certo. “O perigo é exatamente esse, de que o ato de ‘cancelar’ – ou seja, de excluir em nova versão – tome força e passe de uma opinião para intolerância”.


Para José Roberto, é como se encerrássemos uma conversa no meio do diálogo abruptamente, simplesmente por nós não concordarmos com o que ouvimos. “Temos de fomentar nas redes sociais a ‘cultura da inversão’, desconstruindo a intolerância com políticas educacionais. Ou seremos vítimas de nós mesmos”.


Não seja ingênuo. Atualmente, quem tem atitude preconceituosa, discriminatória, deve estar consciente de que se arrisca a receber esse tipo de julgamento pelos meios digitais. Principalmente se for uma figura pública, a pessoa não pode ser ingênua de achar que não será julgada, pois está facilitando que reações de repúdio sejam deflagradas na web.


“Isso causa grande prejuízo, principalmente em se tratando de famosos que buscam obter lucros através do mesmo meio que vai lhes condenar”, analisa o advogado, referindo-se, por exemplo, aos influenciadores digitais, que ganham dinheiro de patrocinadores por causa de suas ideias e, acima de tudo, por sua imagem.


“Qualquer atitude que afronte regras morais, seja preconceituosa ou discriminatória, não é mais aceita e nem há espaço para qualquer condescendência. O julgamento é sumário e, no meio digital, implacável. Portanto, todos sabem muito bem dos riscos que correm com a sua exposição. Logo, prudência é a escolha mais inteligente”, recomenda José Roberto, que tem especialização em Direito Digital e mestrado em Relações Internacionais Laborais, além de ser relator da 14ª turma do Tribunal de Ética da OAB-SP.


Para Renato Melo, empresário e professor de Marketing da Esamc Santos, “o que as pessoas, assim como as empresas, estão fazendo é cobrar, especialmente das personalidades que influenciam audiências, que não aumentem (mesmo que sem intenção) ainda mais o machismo, o racismo, o desprezo por causas ambientais, entre tantos assuntos não resolvidos por outras gerações.


Isso pode acontecer com qualquer pessoa que apresente comportamento ou opinião desagradável, mas, obviamente, acaba sendo em menor escala do que com um famoso”.


Em muitos casos, essa cobrança é acatada. Para dar dois exemplos no futebol, Melo cita o caso do mascote do Galo (Atlético Mineiro), que pediu para uma das jogadoras do elenco feminino dar uma voltinha, depois esfregou as mãos e levou à boca num gesto machista. Tal atitude repercutiu prontamente nas redes sociais, com a campanha “Galo cancelado” e o funcionário acabou sendo afastado.


O que os estudiosos esperam é que essa cultura caminhe para uma discussão cada vez mais madura e construtiva sobre até onde vai a liberdade de expressão.


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