Após viver relação abusiva, advogada decide conhecer 40 países antes de fazer 40 anos

Silvinha Mantovani afirma: “As pessoas não têm ideia de quantas mulheres, assim como eu, viveram ou vivem relações abusivas. É algo mais comum do que se imagina"

Por: Stevens Standke  -  14/05/20  -  14:49
Silvinha começou indo para Marrocos. O 40º país foi a Índia:
Silvinha começou indo para Marrocos. O 40º país foi a Índia: "Cada lugar curou pedaço de uma ferida"   Foto: Arquivo Pessoal

A história da advogada Silvinha Mantovani choca por si só. E ela fica ainda mais impactante com a seguinte constatação: “As pessoas não têm ideia de quantas mulheres, assim como eu, viveram ou vivem relações abusivas. É algo mais comum do que se imagina. Isso não existe apenas no mundo feminino. Também acontece com homens e com homossexuais”.


Quando se formou em 2006, Silvinha deixou o Brasil para fazer um MBA em Barcelona e, após um tempo morando lá, começou a se relacionar com um espanhol. A princípio, ele era a personificação do príncipe encantado, como conta Silvinha. Mas, aos poucos, ela se descobriu em um relacionamento abusivo, que durou quatro anos e foi marcado, principalmente, pela sucessão de agressões psicológicas – as piores, para a paranaense, envolviam ameaças à sua família, que estava no Brasil.


Depois de se separar, Silvinha resolveu visitar 40 países antes de completar 40 anos. Conforme as viagens foram curando as feridas deixadas pelo ex, a advogada acabou não só abrindo o Instagram @40antesdos40, para compartilhar sua saga, como escreveu o livro 40 antes dos 40 – Um Passaporte Salvou Minha Vida (Editora Feliz). Como parte do seu processo de transformação, a paranaense de 42 anos ainda deixou o emprego que tinha na Espanha para focar nesses dois projetos e nas palestras que passou a ministrar, inspiradas em sua trajetória. Conheça melhor a história de Silvinha na entrevista a seguir. 


VIOLÊNCIA Demorou para você perceber que estava em uma relação abusiva?


Sim. Esse tipo de relacionamento geralmente começa muito bem, o parceiro parece um príncipe encantado e faz a gente se sentir a pessoa mais importante do mundo. Só que, com o tempo, isso muda. Você vai se afastando dos amigos, deixando de ser você mesmo, e modifica o seu comportamento, a sua vida. Quando a mulher se dá conta do que está acontecendo, ela já se encontra completamente anulada, sozinha e com um parceiro que a coloca para baixo e que pratica violência psicológica.


O homem que é assim costuma ter algum grau de sociopatia. Vou te falar que eu estava preparada para sofrer violência física, mas não psicológica. Porque, como meu pai era alcoólatra e agressivo, não só a minha mãe como eu fomos alvos de violência física. Posso garantir para você que a violência psicológica é tão danosa como a física, ela deixa traumas para o resto da vida.


O seu ex a agrediu fisicamente?


Foram agressões pequenas, como atirar uma garrafa de água em mim ou apertar o meu braço enquanto gritava comigo. Nunca houve tapas, olho roxo ou uma surra. Ele me maltratava mais psicologicamente. Numa relação abusiva, o parceiro começa fazendo coisas boas para te ter na mão e conseguir mandar em você. Aí, passa a existir um círculo vicioso. Quando ele percebe que está te perdendo ou você ameaça ir embora, ele dá uma maneirada no comportamento, para não te deixar ir, e depois, tudo volta ao normal. É uma situação bem complicada.


Para você ter ideia, um detetive particular me seguiu por seis meses e havia programas espiões nos meus computadores - o meu ex sabia tudo o que eu fazia e com quem eu falava. Ele ainda me obrigava a dizer coisas que nunca havia feito.


Como assim?


Ele, por exemplo, cismava que eu tinha um caso com o garçom do restaurante em que a gente estava. Enquanto eu não falasse que tinha algo com o garçom, ele tremia, suava e ficava bem alterado. Esse ciúme doentio era constante. Depois, conversávamos e ele pedia desculpas, alegando que tinha feito aquilo porque me amava demais. Mas quem ama não humilha, nem maltrata, né?


Por eu ser brasileira e ele, espanhol, também era comum me ameaçar da seguinte forma: falar que, se eu o deixasse, iria me denunciar para as autoridades, inventando uma história que acabaria com a minha reputação ou que me faria ser expulsa do país. Ele é de uma família influente e que tem dinheiro; o primo dele chegou a trabalhar na equipe de segurança do rei da Espanha.


O seu ex a proibia de ver determinadas pessoas?


A proibição de alguém assim é diferente de falar: "Você não vai mais ver aquela pessoa". Numa relação abusiva, o parceiro monta todo um cenário, ele cria uma situação que faz com que você não vá a determinado lugar ou deixe de se encontrar com os amigos, para ficar só com ele. Uma pessoa assim utiliza de várias artimanhas.


Lembro que, se os amigos nos convidavam para algo, ele, por exemplo, dizia que estava muito triste para sair de casa. O meu ex chegou a inventar que existia a possibilidade de o filho dele estar com câncer para a gente desistir de ir a um aniversário. Um tempo depois, quando encontrei o garoto, perguntei sobre o resultado dos exames e ele falou que estava bem, que nunca teve nenhum problema de saúde.


Silvinha tentou se separar por anos, mas
Silvinha tentou se separar por anos, mas "não é fácil terminar com um sociopata"   Foto: Arquivo Pessoal

Qual foi a pior agressão psicológica que sofreu do seu ex?


Alguém como ele sabe exatamente qual é o calcanhar de aquiles do outro. Toda vez que ele ameaçava fazer algo com a minha família, eu ficava muito mal. E pensava: “Se acontecer alguma coisa com a minha mãe ou com a minha irmã, será minha culpa, pois sou eu quem está com esse cara. Jamais me perdoarei se ele fizer algo para elas”.


Detalhe: o meu ex tocava o meu calcanhar de aquiles tanto para o bem quanto para o mal. Por exemplo, quando eu dizia que ia embora, ele fazia coisas bacanas para a minha família ou dava um jeito de a minha mãe e a minha irmã virem ficar um tempo com a gente na Espanha.


Ele tinha tanta noção desse meu ponto fraco que, quando nos separamos, eu recebia ligações de madrugada, de pessoas contratadas por ele. Elas afirmavam: “Com você, não vamos fazer tanta coisa. Apenas vamos te dar uma surra e desfigurar a sua cara. Quanto à sua família, é barato contratar um assassino de aluguel no Brasil”.


SEPARAÇÃO Demorou exatamente quanto tempo para conseguir terminar com ele?


Olha, quando terminei a faculdade de Direito no Brasil em 2006, me mudei para Barcelona para fazer o MBA e, desde então, moro na Espanha. Já estava há um tempo no país quando conheci o meu ex. Nós moramos juntos, não chegamos a casar. A relação durou quatro anos. Tem gente que pergunta: “Como você aguentou tudo isso?” A questão é que eu não conseguia me separar dele, tentei terminar durante dois anos e meio, mas não é fácil acabar o relacionamento com um sociopata.


Esse tipo de pessoa é inteligente, sabe manejar a situação e, como disse, usa várias artimanhas para te ter do lado. Às vezes, ele dizia: “Desculpa, eu vou mudar”. Com o tempo, comecei a ter medo dele, pois, por estarmos juntos, via o que ele fazia com os outros e, justamente por isso, sabia que era capaz de fazer tudo o que prometia fazer comigo.


Como foi a separação de vocês?


Certo dia, tivemos uma conversa amigável sobre nos separarmos. Devia ter desconfiado de tão cordial que ele foi. Porque saí para visitar uma amiga e a moça que limpava o apartamento ligou, falando que o meu ex tinha trocado as fechaduras. Ele também tirou todo o dinheiro da nossa conta conjunta e bloqueou os cartões. Me vi na rua, com a roupa do corpo e 800 euros que possuía numa conta particular.


Tive de recomeçar do zero. Fiquei mais de três meses morando de favor na casa de uns amigos. Após nos separarmos, eu e meu ex passamos por várias fases: primeiro, ele procurou me humilhar de todas as maneiras possíveis; aí, tentou reatar comigo; depois, vieram as ameaças. Além disso, ele colocou o detetive de novo na minha cola.


“A violência psicológica é tão danosa como a física; ela deixa traumas”, diz Silvia
“A violência psicológica é tão danosa como a física; ela deixa traumas”, diz Silvia   Foto: Arquivo Pessoal

REVIRAVOLTA O que mais aconteceu?


Entrei em depressão, perdi sete quilos em um mês. Um dia, estava no computador, apareceu promoção de um pacote de viagem de sete dias para Roma por 200 euros e comprei. Foi a melhor loucura que fiz na vida, pois, como havia lido diversas vezes o livro Comer, Rezar, Amar, na Itália decidi que iria refazer a minha vida e visitar 40 países antes dos 40 anos.


Na época, eu estava com 36 anos e já havia conhecido 12 países. Portanto, faltavam 28 para bater aquela meta. Ao voltar para a Espanha, denunciei o meu ex e ele foi obrigado a entregar as minhas coisas que estavam no apartamento dele, mas acabou não devolvendo tudo, só uns 40%.


E quando as ameaças tomaram proporção grande demais, resolvi fazer o que uma amiga sugeriu: pagar um curso de inglês em Dublin para obter o visto de estudante, que me permitia estudar e trabalhar na Irlanda. Para isso, esperei minha irmã levantar o dinheiro que havia emprestado para ela comprar um carro (R$ 25 mil).


Ficou quanto tempo na Irlanda?


Um ano e meio. Mas voltava com frequência para a Espanha, de low cost (voos de baixo custo), porque, como tinha apenas visto de residência e trabalho e a minha cidadania espanhola estava para sair, não podia ficar fora do país mais de seis meses. Na Irlanda, trabalhei como uma louca, 18 horas por dia, para juntar dinheiro e começar a viajar.


Quando minha cidadania espanhola saiu e a situação com o meu ex acalmou (ele realmente deixou Silvia em paz mais ou menos um ano após terminarem), decidi retornar para a Espanha. Voltei a morar em Barcelona como antes, pois meu ex não gostava da cidade e residia num município vizinho – onde morei nos quatro anos em que ficamos juntos.


VIAGENS Fez um planejamento para cumprir a meta de visitar 40 países?


Não. Eu dava preferência para os países em que a viagem ficaria mais em conta ou aproveitava as promoções de passagens aéreas. Meu primeiro destino foi Marrocos – na época, já estava na Irlanda há quatro meses. Como meu ex dizia que, enquanto estivesse com ele, não iria pisar no mundo árabe, ao chegar a Marrocos senti uma liberdade, de poder tomar as minhas próprias decisões. Isso me fortaleceu demais.


Qual foi o país de número 40?


A Índia, quatro meses antes de completar 40. Vou te contar que, às vezes, achava que não ia conseguir cumprir essa meta... Todas as viagens me transformaram um pouquinho, e a Índia fechou com chave de ouro. Não tem um país que foi mais importante ou de que gostei mais, porque para mim é como um quebra-cabeças. Cada lugar foi curando um pedacinho de uma ferida. Também li muito para entender e processar o que aconteceu comigo.


Em que sentido você mudou mais?


Sou uma pessoa bem mais segura, paciente e agradecida pelas coisas que tenho. Era para eu estar me descabelando agora, no meio da pandemia, pois meu futuro, que estava superencaminhado, ficou incerto. Só que, como disse, sou mais segura de mim, reencontrei a Silvia que tinha ficado anulada por completo.


Continuou viajando depois de alcançar seu objetivo?


Sim! Não me vejo mais sem viajar pelo mundo; a cada país que conheço, quero visitar mais três, cinco, dez. Já fui para 59 países (em mais de 300 viagens). Com o isolamento social, meio que bate uma agonia, por não poder pensar no próximo destino...


Depois do relacionamento abusivo, conseguiu se envolver com mais alguém?


Consegui. Após a separação, demorei um ano e meio, quase dois para me envolver de novo com alguém. Já tive algumas relações desde então, mas nada que me fizesse pensar em casar e construir uma família. Hoje, não me conformo com qualquer coisa. E não tenho pressa. Se conhecer alguém, muito bem. Se continuar sozinha, vou estar igualmente feliz.


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