'A arte me salvou', afirma Eduardo Kobra, autor do mural da Ponta da Praia

O artista ganhou projeção internacional nos 33 anos de street art. Agora, se prepara para abrir um instituto

Por: Stevens Standke  -  08/11/20  -  13:15
  Foto: Foto Vanessa Rodrigues

O mural Coração Santista, de 800 metros quadrados, tem atraído uma infinidade de pessoas para a Ponta da Praia, desde que foi inaugurado no fim do mês passado, no Centro de Atividades Turísticas (CAT). E representa um novo marco na carreira de seu autor, Eduardo Kobra, por significar a superação de uma fase supercomplicada – que, além dos reflexos da pandemia de covid-19, inclui a descoberta de um sério problema respiratório e a perda de Catarina, segunda filha do artista. “Com todas as crises que enfrentei neste ano, achei que não ia mais conseguir voltar a trabalhar”, confidencia.


Ao longo dos 33 anos de carreira, Kobra, com sua insistência e dedicação extrema, conseguiu driblar o preconceito que cercava a street art e se tornar um nome de peso não só dentro como fora do Brasil. Basta ver que tem obras espalhadas por mais de 30 países e, assim que a situação permitir, vai viajar para fazer murais no World Trade Center (Nova York/EUA), em Israel e no Líbano.


Na entrevista a seguir, o paulistano de 45 anos relembra momentos especiais de sua trajetória e fala ainda de como tem aproveitado sua arte para ajudar quem precisa, necessidade essa que vai culminar na criação do seu próprio instituto, em 2021. 


SAÚDE O que fez para conseguir passar praticamente despercebido nos mais de 40 dias em que ficou em Santos produzindo o mural da Ponta da Praia?
Eu queria que a população se surpreendesse quando visse o trabalho pronto. Mas sabia que, para isso, ia precisar achar uma forma de ocultar o painel enquanto ele estava sendo produzido, pois, como uma parte da obra remete aos 80 anos do Pelé, as pessoas iam identificar facilmente do que se tratava já nos esboços.


A solução acabou surgindo meio que naturalmente. Como tem um estacionamento na frente do Centro de Atividades Turísticas, a gente decidiu colocar uma tela de proteção, para evitar que as gotículas da tinta espirrassem nos carros, e foi isso que permitiu que tudo passasse praticamente despercebido. Sem falar que esse painel tem um significado especial para mim.


Que é...
Eu tive um problema respiratório sério assim que a pandemia começou. Fiquei alguns meses sem conseguir sair de casa, com falta de ar. A princípio, cheguei até a pensar que era covid-19. Fui três vezes para o pronto-socorro, passei por vários médicos... Nesse período, fiz apenas mais dois trabalhos em espaços públicos: no Autódromo de Interlagos, em São Paulo, e na Escola Raul Brasil, em Suzano, onde aconteceu aquele massacre no ano passado.


Quando fui para Santos, eu ainda não estava bem e foi na Cidade em que iniciei o tratamento com um médico dos Estados Unidos, que conseguiu diagnosticar o que eu tinha – o problema respiratório foi provocado por uma forte intolerância alimentar. Hoje, estou melhor e com uma série de restrições alimentares.


Ao mesmo tempo, me sentia bastante oprimido e ansioso, pois, de 2019 para cá, recebi cerca de 40 convites para trabalhos fora do País e, com a pandemia, praticamente todos ficaram inviabilizados. A obra em Santos, portanto, tem um significado especial nessa minha volta à atividade.


Há mais ou menos dez anos, você descobriu que metais pesados das tintas haviam entrado na sua corrente sanguínea. Esse problema de saúde está sob controle? 
Sim. Esse problema, que é permanente, exige que eu tenha cuidado redobrado com a minha saúde desde antes da pandemia: uso máscara, luvas, óculos de proteção, camisa de manga comprida e evito pintar em lugares fechados. Porque a inalação da tinta me faz muito mal.


Na realidade, se fosse para seguir as recomendações à risca, eu já devia ter parado de pintar há alguns anos. Afinal, não dá para me proteger completamente da tinta.


  Foto: Foto Vanessa Rodrigues

GRATIDÃO

Junto a isso tudo, você ainda teve de lidar com a morte da sua filha Catarina em março.

Me mudei de São Paulo para Itu por conta dessas coisas todas. Na Capital, eu morava numa das esquinas da Marginal Pinheiros e, devido à poluição do ar, estava sempre doente. Aí, para completar, a Catarina, minha segunda filha, nasceu e 12 horas depois do parto faleceu. O que mexeu bastante comigo e com a minha família. Para falar a verdade, com todas as crises que enfrentei neste ano, achei que não ia mais conseguir voltar a trabalhar.


Seu mais novo projeto, um painel no Minhocão, em São Paulo, deve ficar pronto na próxima semana. De acordo com a sua equipe, esse trabalho também tem uma conotação bem pessoal.

Tem, sim. Ele remete às minhas experiências de vida. Quando estiver finalizado, as pessoas vão ver uma mão, como se fosse a de Deus, resgatando alguém que se afoga. Isso se refere a todas as dificuldades que encarei até hoje.


Ao longo do tempo, precisei mudar meus hábitos para continuar vivo. Nunca tive problema com drogas, mas bebia bastante. Há oito anos, não faço mais isso. Também enfrentei problemas pessoais, questões familiares e nunca fui de cuidar direito da minha saúde. Tive de reconsiderar toda a minha vida, a minha conduta, e seguir um caminho mais estreito, baseado em outros valores.


Casei, tenho um filho de 4 anos (Pedro). Hoje, sou um artista careta, digamos assim. Não bebo, não fumo, não vou pra balada e foco no trabalho e na família. Vim da periferia de São Paulo. Vi vários amigos, inclusive com talento artístico, envolvidos com as drogas ou com o crime, chegando ao ponto de serem presos e até perderem a vida, pelos caminhos errados que seguiram.


A minha vida inteira foi nas ruas, tudo que aprendi foi nas ruas. A questão é que eu fiz escolhas diferentes. Esse painel no Minhocão é como se fosse o meu agradecimento a Deus, por tudo.


ORIGENS

Como a arte se manifestou para você?

Desde a escola, já me interessava por desenho. Tanto é que fiz parte de um grupo de meninos que andavam com seus cadernos a tiracolo e organizavam uma espécie de competição de desenho. Aí, com 12, 13 anos, comecei a pintar na rua, fazia pichação e grafite. Nunca imaginei que um dia ia vender minha arte, por exemplo, em uma galeria. Até porque era o tipo de atividade que não oferecia qualquer tipo de perspectiva e que envolvia um monte de dificuldades, além da resistência da sociedade.


Eu pintava por paixão mesmo, como é até hoje. Enquanto tiver forças, vou continuar subindo em escada e nos andaimes, pois, para mim, parar de pintar é como ficar inválido. Sou extremamente meticuloso, calculista no sentido de me dedicar para valer ao trabalho e sempre tentar fazer o melhor possível.


  Foto: Vanessa Rodrigues/AT

Já ouvi falar que você também é muito estudioso.

Sou autodidata, procuro me aprofundar nos assuntos, realizo diversas pesquisas para obter o resultado desejado numa obra. Antes de começar a pintar, vou atrás de fotos do lugar onde o painel vai ficar, levanto informações da cidade, visito museus, galerias, bibliotecas... Faço uma imersão, um verdadeiro mergulho.


Sou muito exigente, não gosto de todos os meus trabalhos, alguns nem fotografo. Me considero o meu maior crítico. Para você ter ideia, mesmo que a obra esteja na metade, seu eu não estiver feliz com ela, troco cores, figuras e, se preciso, apago tudo e refaço. Profissionalmente, sou assim; agora na vida pessoal, sou mais bagunceiro.


No dia a dia de trabalho, não é apenas a tinta que oferece risco, você pode cair de uma escada ou de um andaime e se machucar. O Agnaldo Brito, meu braço direito, que participou do mural de Santos, certa vez caiu de nove metros de altura e, hoje, tem 50 pinos no rosto.


Você já se acidentou?
Não nessa proporção. Lembro que, em Roma (Itália), caí de uma escada alta, bati as costas em uma quina e demorei dias para me recuperar. Em outra ocasião, estava pintando dentro de uma loja e, se não fosse uma caixa, na qual me segurei, teria caído da escada em cima de uma prateleira de vidro.


MARCANTE

Se tivesse que destacar uma experiência incrível que teve na carreira, qual seria?
Tudo que conquistei foi pela persistência, pela insistência. Nunca fui de ter apoio de governos, de entidades públicas, de ninguém. Algo que destaco é a experiência que tive em Nova York, pois se trata do berço da street art – aliás, já me inspirei bastante em artistas nova-iorquinos.


As pessoas me diziam que eu jamais ia conseguir pintar lá, porque é um lugar rigoroso demais. Resolvi ir contra todas as possibilidades. Criei o projeto chamado Cores pela Liberdade, eu o planejei por três, quatro anos, e fiquei morando um período em Nova York, para produzir uma série de murais, 18 no total. Hoje, o maior mural de Manhattan é de minha autoria.


Depois desse projeto, ainda fui eleito uma das personalidades locais do ano. E por causa de uma dessas obras, a Madonna me convidou em 2017 para pintar no hospital pediátrico que ela construiu em Malawi, país africano de onde são quatro filhos adotivos dela.


A street art se tornou algo cool.

Sim, mas, quando comecei em 1987, a maioria das pessoas achava que era coisa de vândalo, de vagabundo ou algo do tipo. Só que o reconhecimento da street art não foi por acaso, artistas de talento passaram a ganhar evidência ao redor do mundo e as pessoas passaram a entender que não se trata de uma arte inferior à que está exposta, por exemplo, numa galeria ou museu.


A arte de rua é tão importante como qualquer outra. A arte foi feita para estar ao alcance da população inteira, e qualquer canto de uma cidade oferece possibilidade para uma intervenção, que vai transformar o ambiente.


  Foto: Foto Vanessa Rodrigues

É verdade que, no início da carreira, você foi acusado de crime ambiental?

Sim, fui detido por três vezes. Na época, as pessoas chamaram de “crime ambiental” o fato de, com o meu trabalho, estar “danificando” o espaço público de São Paulo. No começo, era bem complicado mesmo. Pintar na rua, às vezes, pode ser bem burocrático. Alguns países somente agora estão abrindo as portas para a arte de rua.


Também já tive vários trabalhos interrompidos; na Grécia, pessoas destruíram um mural que pintei por 30 dias por considerarem que havia conotação religiosa nele. E na Rua 23 de Maio, na Capital, moradores chamaram a polícia para mim, eles não reconheceram quando cheguei para restaurar uma obra minha que fica lá.


SOLIDARIEDADE

A pandemia aumentou realmente a quantidade de iniciativas beneficentes que você encabeça?

Sempre tive a preocupação de não fazer obras aleatórias e de, por meio do meu trabalho, enviar mensagens de paz, em prol da proteção do meio ambiente e dos animais, contra o preconceito, o racismo, a discriminação, a violência e a favor da tolerância religiosa.


Mas, de um tempo para cá e ainda mais com a pandemia, entendi que posso criar obras com propósito, ou seja, fazer trabalhos que serão leiloados e terão o dinheiro da sua venda revertido para ajudar pessoas em vulnerabilidade social, ONGs e instituições beneficentes.


Por exemplo: a venda da obra Coexistência, que produzi recentemente, permitiu auxiliar mais de 20 mil famílias de rua de São Paulo agora na pandemia; e a tela que fiz com a temática do Líbano foi leiloada para contribuir com as vítimas da tragédia em Beirute – a esse dinheiro foram somadas doações da população.


Existe muita coisa que pode ser feita pela próximo e tenho pensado bastante nisso. Estou, inclusive, perto de realizar o sonho de ter o meu próprio instituto.


Quando isso deve acontecer?

A documentação está praticamente pronta. Pretendo iniciar as atividades do instituto no primeiro semestre de 2021. Meu objetivo é, através dos vários tipos de arte, proporcionar uma possibilidade de transformação das vidas dos moradores de periferia.


Mais para frente, quero espalhar pequenas células do instituto pelo Brasil inteiro. A arte me salvou de muita coisa e pode dar esperança para um monte de gente.


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