A liberdade está bem ali, no quintal de Lydia

Alfabetizada aos 65, idosa abriu biblioteca pública

Por: Tatiane Calixto & Da Redação &  -  14/08/19  -  12:35
Leitura é liberdade, afirma Lydia Gonçalves, que aprendeu a ler após ser enganada por um advogado
Leitura é liberdade, afirma Lydia Gonçalves, que aprendeu a ler após ser enganada por um advogado   Foto: Alexsander Ferraz/AT

Foi na idade em que muitos pensam em parar, desistir, descansar, que Lydia Gonçalves diz ter começado a viver. Até então analfabeta, perdeu parte da terra que o pai lhe deixou depois de assinar um documento sem saber o que era. Lydia pensava estar registrando um pedaço de chão em seu nome, quando na verdade havia passado parte do terreno que herdara a um advogado desonesto. “Ali, decidi que iria estudar e não deixar ninguém perto de mim sem saber ler”, conta. 


Foi assim que, aos 65 anos, ela começou a se alfabetizar. E no instante em que foi movida por aquela decisão, foi lançada também a semente da Biblioteca Comunitária Escritora Lydia Gonçalves, em Itanhaém. O lugar tem mudado os hábitos dos moradores do Bairro Estância Santa Cruz. 


Lydia, hoje com 83 anos, nasceu e cresceu no mesmo bairro, afastado do Centro. Seguia os passos dos pais, lavradores, na terra fértil de onde brotava o sustento da família, que não tinha ninguém que tivesse frequentado a escola. 


“Ali, eu cresci, casei, vi meus filhos crescerem também e meu marido morrer. Casei de novo. Imagina! Achei que não faria mais nada da vida”. Mas, ao saber que tinha sido passada para trás por não saber juntar o amontoado de letras no documento, decidiu dar um novo rumo à vida. “Falo para todo mundo que comecei a viver com 65 anos, quando fui para a escola.” 
Lydia concluiu o Ensino Fundamental I e II e o Médio na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Depois, emendou uma faculdade de Pedagogia e a publicação de três livros. Apaixonada pelos estudos, não parou. Atualmente, cursa o último ano de Direito. 


Compartilhar


Mas, como ela mesma diz, não poderia fazer tudo apenas para si e deixar de abrir as portas de um novo mundo – ou as páginas de novos livros – a outras pessoas. Por isso, há quatro anos, transformou o quintal de casa em uma biblioteca. Uma forma de colaborar com a libertação dos que estão a sua volta: segundo ela, leitura é sinônimo de liberdade.


“Saí pedindo e comprando livros. A Prefeitura de Itanhaém me ajudou e doou alguns, e o sonho foi se concretizando”, lembra, entre risos.


Entre seus autores preferidos, estão José de Alencar e Graciliano Ramos. Ao todo, são mais de 2 mil títulos organizados com cuidado nas prateleiras. 


Quem chega pode sentar e ler no local, emprestar livros e participar das rodas de contação de histórias ou aulas de reforço escolar comandadas por Lydia.


“Eu conheci a Lydia no lançamento do primeiro livro dela e fiquei encantada. Eu falo sempre que ela vivia em uma gaiola e, depois que foi estudar, se libertou”, afirma Elizabeth Cury Bechir Watanabe, membro e ex-presidente da Academia Itanhaense de Letras, da qual Lydia também faz parte. Hoje, segundo Elizabeth, o projeto da amiga é um grande exemplo de impacto social e de perseverança.


Oportunidade


Talvez Jamilly Bessoni Felippe, de 9 anos, ainda não entenda toda a dimensão dos esforços de Lydia e da resistência que os livros ajeitados nas prateleiras de um quintal representam. Mas é lá que ela sempre está. “Sempre veio e pego livros de animação e de princesas”, conta. 


O pai dela, Jorge Felippe, comemora. “Eu apoio. É bom porque distrai e faz com que ela saia de frente da TV.” Ele faz questão de agradecer a Lydia pelo empenho. “O bairro é afastado. Então, é importante essa oportunidade de ter uma biblioteca com tantos livros aqui.”


Jamilly, de 9 anos, está sempre em meio a livros. “Faz com que ela saia da frente da TV”, apoia o pai, Jorge
Jamilly, de 9 anos, está sempre em meio a livros. “Faz com que ela saia da frente da TV”, apoia o pai, Jorge   Foto: Alexsander Ferraz/AT

Ler e ouvir histórias, um incentivo à cultura


Matheus Silva Fajaro, de 8 anos, diz ir à biblioteca atrás dos gibis, Nathan Gonçalves Castro, de 12, também. No entanto, não escondem o encantamento ao ouvir, em roda, a história contada pela voz de Lydia. 


“Mas eles existem de verdade?”, alguém arrisca perguntar sobre os personagens fantásticos de um dos contos. “O envolvimento deles ajuda a fomentar o gosto pela leitura”, diz Lydia, com o brilho nos olhos de quem vence desafios.


Incentivar a leitura em um País onde se lê pouco é um desafio e tanto. “Esse é um trabalho maravilhoso. Porque o que vemos nas salas de aula é a falta de leitura dos nossos alunos”, conta a professora Claudia Bechir, amiga de Lydia. “É um trabalho muito importante”.


“(O trabalho) Ajuda na conscientização da importância da leitura e na divulgação da cultura. Aqui, ela oferece acesso a ideias de grandes mentes a uma comunidade afastada”, considera a também amiga e advogada Joana Soares Merlin Scholtes. 


Sonia Aparecida do Nascimento Cândido mora no Bairro Estância Santa Cruz e é avó de dez crianças. Ela conta que os netos frequentam a biblioteca comunitária e isso representa uma grande oportunidade de diversão, estudo, conhecimento e, também, a oportunidade de estarem longe de coisas erradas. “o que queríamos mesmo era que esse projeto crescesse cada vez mais.”


Lydia faz rodas para contar histórias e comanda aulas de reforço escolar. Ela é formada em Pedagogia
Lydia faz rodas para contar histórias e comanda aulas de reforço escolar. Ela é formada em Pedagogia   Foto: Alexsander Ferraz/AT

Perfil


Biblioteca Comunitária Escritora Lydia Gonçalves


O que é?
Uma biblioteca comunitária no Bairro Estância Santa Cruz, em Itanhaém. Além de leitura no local e empréstimo de livros, também são realizadas rodas de contação de histórias e aulas de reforço escolar.


Onde é?
Rua Mogi das Cruzes, 310, Estância Santa Cruz, em Itanhaém.


Contato:
Telefone 3429-3228.


Logo A Tribuna
Newsletter