A verdade e o espelho

A reunião dos fragmentos do espelho original talvez permita que nos vejamos por inteiro, como realmente somos!

Por: Adilson Luiz Gonçalves  -  15/05/20  -  18:01

Diz uma antiga lenda persa que a Verdade era um grande espelho, que foi partido em mil pedaços, lançados por terra. Desde então, cada um que lhe encontra um fragmento, acredita tê-la achado, toda, e a toma como sua, única, insofismável.
Uma outra lenda, a de Narciso conta que ele, ao ver sua bela imagem, que desconhecia, refletida num lago, apaixonou-se por si próprio e afogou-se, ao tentar se tocar.


Ambas falam do ego e do risco do ser humano se deixar levar pela vaidade, soberba ou ânsia de poder.


O episódio bíblico da Torre de Babel também é um belo retrato dessa condição pouco edificante, apesar de tratar de uma edificação. Um rei quis alcançar o céu e mandou construir a torre. Essa atitude teria levado à confusão das línguas e à divisão dos povos.


Assim, alheios às lições da vida, os seres humanos continuam a construir "torres" cada vez mais altas e "muros" cada vez mais sólidos, não para chegar ao céu ou adaptar o meio ambiente, mas para instalar tronos, demarcar e expandir domínios.


Assim surgiram dezenas de países, centenas de religiões, inúmeras ideologias. Várias "verdades" que, em vez de juntarem os pedaços do espelho, preferem fragmentá-los ao nível de areia. E cada um de seus líderes toma seu “espelho”, constrói seu “muro” ou sua “torre”, e cria mais uma divisão para satisfazer seu desejo de poder ou megalomania. Então, de sua “torre” dita a sua “verdade”, que se confunde com o “muro”, que limita, reprime, confunde e desune.


Para esses não basta crer e professar: tem que submeter-se, não questionar, falar e vestir-se igual, sustentar o aparato e tratar “diferentes” como inferiores, antagonista, ameaças.


No caso da religião, não importa se o Pai é o mesmo: tem que ser adotado pelo mesmo padrasto e morar dentro dos mesmos "muros", dos mesmos currais.


Mas, fragmentos de espelhos só servem para decorar fantasias, cujo brilho fascina, mas distorce e pode ferir. São igualmente belos quando arranjados em mosaicos, mas formam uma imagem que nada tem a ver com seu elemento original. Nessa colagem fragmentada, nos vemos como se estivéssemos cheios de cicatrizes.


Acontece que o paraíso que dizem prometer, secular ou espiritual, nunca o será, se pleno de muros e torres, físicos ou psicológicos. E mesmo o espelho íntegro pode ser enganoso, pois a prata que se põe sob o vidro lhe tira a transparência e só permite ver um lado. E nem todo o reflexo é reflexão, como nem todo o douto é são.


Quanto ao muro e à torre, só quem está sobre eles vê todos os lados. Se for um escravo da vaidade ou do mal, talvez ele não diga tudo o que vê. Talvez ali instale seu trono, para reinar pela ignorância. Pode ser que omita ou, simplesmente, minta, para manter sua ascendência sobre os que cativa ou subjuga.


A reunião dos fragmentos do espelho original talvez permita que nos vejamos por inteiro, como realmente somos!


Mas, para que ele reflita é preciso de luz! E para que haja luz – e ar puro – são necessárias amplas portas e janelas.
Assim, ao abrirmos esses vãos veremos mais, melhor e, quem sabe, cheguemos à conclusão que não precisamos de torres para alcançar o céu. Basta dispor o espelho sobre o solo e verificar que, ao caminhar sobre ele, o céu vem até a terra.


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