Liberdades e libertinagens

Confundir liberdade com libertinagem? Nem pensar. A liberdade de escolha não significa ausência de análise. Às vezes, o numeral e o complemento têm o mesmo número

Por: Dad Squarisi  -  22/04/20  -  11:57

Recado


“A língua é minha pátria.”
Caetano Veloso


O governo reabre o comércio ou mantém as portas fechadas? Retoma as aulas ou mantém a meninada em casa? Libera missas e cultos ou mantém os fiéis distantes de padres e pastores? As respostas variam. Um dos defensores do retorno aos tempos pré-coronavírus é Jair Bolsonaro. O presidente jura que 70% da população... ops! Vai ou vão se contaminar? Trata-se de questão de concordância.


A origem


Percentagem ou porcentagem? Tanto faz. A primeira forma se inspirou no inglês. Na língua de Shakespeare, dizem percentage, filhote de per cent. A segunda vem da terrinha. Em Pindorama, dizemos por cento. Daí porcentagem.


Menor é melhor


E a escrita? Há duas formas. Uma: com todas as letras. É o caso de sessenta por cento. A outra: com algarismos – 60%. Qual a melhor? A segunda. Ela tem duas vantagens. A primeira: é econômica. A outra: é de leitura rápida. São exigências do mundo moderno.


Sem economia


A maior exigência, porém, é a clareza. Diante dela, cessa tudo o que a musa antiga canta. Se escrever mais de um valor da porcentagem, esbanje. Repita o sinal em cada um deles: As ocorrências devem subir entre 1% e 3% (nunca entre 1 e 3%). Os descontos vão de 10% a 50%. Uns 30% ou 40% da população vivem com um salário mínimo.


Concordância


A concordância tem dois caprichos. Um deles é a colocação – o verbo vem antes ou depois do numeral? O outro é a companhia. O numeral aparece solitário ou acompanhado? Dominadas as manhas, a alternativa é uma só. Acertar ou acertar.


Capricho 1


Se o número vem antes do verbo, você escolhe. O verbo pode concordar com o numeral ou com o complemento: 70% da população vão se contaminar (concorda com 70). 70% da população vai se contaminar (concorda com população).


Olho vivo


Confundir liberdade com libertinagem? Nem pensar. A liberdade de escolha não significa ausência de análise. Às vezes, o numeral e o complemento têm o mesmo número. Aí, adeus, alternativa: 1% da população vai se contaminar. 10% dos brasileiros vão se contaminar.


Companhia


Se o numeral for determinado (acompanhado de artigo ou pronome), a concordância só se fará com ele: Uns 70% da população vão se contaminar. Este 1% de indecisos decidirá o resultado. Bons 30% do corpo docente faltaram à convocação. 


Capricho 2


Com o número percentual depois do verbo, a concordância se faz obrigatoriamente com o numeral: Abstiveram-se de votar 30% da população. Tumultuou o processo 1% dos candidatos. Saiu da sala apenas 1% dos alunos.


É isso.


Bicudos


A CNN noticiou: “O Texas começa a reabrir o comércio a partir de segunda-feira”. Certo? Nãooooooooo! Dois bicudos não se beijam.


A partir de é expressão de tempo. Quer dizer a começar em. Por isso, a partir de não combina com o verbo começar. É pleonasmo. Escolha um ou outro: O Texas começa a reabrir o comércio na segunda-feira. O Texas reabre o comércio a partir de segunda-feira.


Gente fina


Ele diz obrigado. Ela, obrigada. Ambos respondem por nada.


Gritaria


O verbo mais conjugado nestes tempos de covid-19? É protestar. Ele sobressai em razão da falta de caráter. Sem cerimônia, serve a dois senhores. Só muda a preposição:


Protestar contra = opor-se: A multidão protesta contra o fechamento do comércio.
Protesta por = clamar, ser a favor de: A multidão protesta pelo fechamento do comércio.


Leitor pergunta


O acusado depõe à polícia ou depõe na polícia?
Serena Bastos, São Vicente


O verbo depor exige a preposição em: O acusado depõe na polícia. Paulo vai depor na CPI. Maria depôs na PF.


Tudo sobre:
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