Silêncio doloroso

É possível ter uma crise de tosse, expelir uma moeda e voltar a falar após 13 anos sem voz?

Por: Cida Coelho  -  01/11/19  -  16:35
É possível ter uma crise de tosse, expelir uma moeda e voltar a falar após 13 anos sem voz?
É possível ter uma crise de tosse, expelir uma moeda e voltar a falar após 13 anos sem voz?   Foto: Imagem ilustrativa

Perder totalmente a voz,  passar mais de uma década sem conseguir emitir um único som e, de repente, voltar a falar.  Esse foi o assunto trazido por um artigo publicado no UOL, no último dia 14/10/2019. O texto traz uma rica descrição dos relatos que Marie McCreadi faz em seu livro Voiceless, publicado em julho. Ao ler seu depoimento, é impossível ficar indiferente a todas as perdas que a autora teve ao longo dos 13 anos em que não conseguiu falar. Foram anos de isolamento, de discriminação, de dificuldades nos relacionamentos, na colocação profissional. Todos muito bem relatados na reportagem. No entanto, o desfecho dessa história nos causa um profundo estranhamento e nos convida a uma reflexão. Acompanhe:


“Comecei a tossir e começou a sair sangue da minha boca. Pensei que estava morrendo. Podia sentir algo se movendo no fundo da minha garganta... Um colega chamou uma ambulância, e Marie foi levada ao hospital. Os médicos viram que ela tinha um objeto na garganta e conseguiram extraí-lo. Estava coberto de muco e sangue, mas, quando o limparam, descobriram que se tratava de uma moeda. Ela estava desde os anos 1960 com aquela moeda presa na garganta - e diz não ter ideia de como o item foi parar lá.”


Do ponto de vista científico, é possível ter uma crise de tosse, expelir uma moeda e voltar a falar após 13 anos sem voz? Conversei com dois especialistas, e ambos analisaram esse caso. Rogério Dedivitis, médico cirurgião de cabeça e pescoço com longa experiência clinica, considera o caso bastante atípico. “A moeda poderia ter ficado alojada no ventrículo laríngeo, mas ficar lá por 12 anos sem nenhum sintoma ou incômodo, e de repente ser expelida, e ainda por cima com muco e sangue, é uma situação absurda, difícil de imaginar. Às vezes, atendo pacientes que tem uma espinha de peixe presa na garganta e já é um incômodo enorme...não consigo imaginar uma situação dessas na prática...me parece bem fantasioso esse relato”.  Luiz de França, médico otorrinolaringologista tem a mesma opinião. “ Acho impossível ela ter uma moeda na laringe e não ter sido diagnosticado pelos médicos durante todo esse tempo, e não apresentar nenhum reflexo, como tosse ou engasgos, numa região tão amplamente vascularizada e inervada. Acho muito mais provável ser de natureza psicogênica”.


Minha experiência clinica como fonoaudióloga me leva a concordar com a opinião dos especialistas. Tive a oportunidade de acompanhar inúmeros casos de afonia, ou seja, de perda de voz na ausência de qualquer causa orgânica. O nome técnico para esses casos é afonia de conversão, e é classificado pela literatura técnica com um distúrbio de voz de origem psicogênica. Alguns desses casos tem longa duração, assim como o caso de Marie.  A perda da voz está, geralmente, associada a uma situação de stress com a qual o paciente, inicialmente, não consegue lidar. Ao perder a voz, ele ganha um álibi para não ter   que enfrentar tal situação. Ocorre que, mesmo depois da situação resolvida, o paciente não consegue mais encontrar o “caminho de volta” . É como ele se desorganizasse e desaprendesse a falar.


O relato de Marie McCreadi é emocionante, mas do ponto de vista técnico, não parece verdadeiro. Não nos cabe confrontar a matéria, muito menos o seu livro.  Não nos cabe comprovar se houve realmente uma moeda presa na garganta da autora por tanto tempo. Contudo,  o relato dela nos conduz a um esclarecimento técnico:  É possível perder a voz durante muito tempo sem que haja uma causa orgânica que  justifique. Por fim,  cabe a reflexão de que o preconceito  ainda é grande quando uma alteração física tem uma causa psicológica. E,  o mais doloroso :  o preconceito pode  começar pelo próprio paciente, que, na maioria das vezes,  tem muita dificuldade em aceitar o diagnóstico.


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