'Pressão sobre Brasil será grande, mas dificilmente com confrontos abertos', diz professor sobre EUA

Gilberto Rodrigues, professor e coordenador de pós-graduação na UFABC, analisa a sucessão presidencial nos Estados Unidos e seus impactos para o mundo

Por: Arminda Augusto  -  10/01/21  -  13:00
Atualizado em 11/01/21 - 23:57
Gilberto Rodrigues analisa a sucessão presidencial nos Estados Unidos
Gilberto Rodrigues analisa a sucessão presidencial nos Estados Unidos   Foto: Alberto Marques

A menos de duas semanas da posse do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, o país foi sacudido pela invasão de seu Congresso por grupos de apoiadores de Donald Trump, na última quarta-feira, um episódio inédito na história americana. Confira, abaixo, uma análise sobre os impactos desse capítulo da história dentro dos Estados Unidos e para a democracia americana.


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Os EUA costumam agir com rigor máximo quando, sob seu ponto de vista, há situações que afrontam a democracia em outros países. Então, até que ponto os episódios de quarta-feira podem afetar a credibilidade da política externa dos EUA?


Afetam muito a credibilidade dos EUA como guardião da democracia no mundo. Mas essa perda de força moral começou com a posse de Trump e foi se aprofundando durante os quatro anos de seu governo. Os atos criminosos contra o Congresso foram o desfecho de um processo de erosão da democracia americana fomentado sistematicamente por Trump durante o seu mandato. O maior aliado dos EUA - o Reino Unido - repreendeu o presidente Trump, pelas palavras do Primeiro Ministro Boris Johnson, “ele agiu de forma errada”. E a OEA soltou uma nota condenando o episódio. Quando diplomatas e políticos dos EUA voltarem a agir com ou sem rigor para criticar a democracia alheia terão provavelmente que ouvir que seria melhor que cuidassem de sua democracia em risco...


Os EUA são pródigos em antecipar movimentos de insurreição em outros países, especialmente os que não têm uma política de alinhamento com a Casa Branca. Os serviços internos de informações, como o FBI, não foram capazes de identificar ato tão grandioso como este do Capitólio? Pode ter havido prevaricação nesse caso?


É muito suspeito que os órgãos de inteligência e anti-terrorismo não tenham captado essas informações e levado a conhecimento da presidência da Câmara. E se houvesse essa informação, não tenha sido repassada ao Vice-presidente, presidente do Senado, e membro do Executivo. Que haveria uma concentração de apoiadores de Trump em Washington, isso parece ser notório. A questão é o discurso prévio de Trump, a incitação para seus apoiadores irem ao encontro do Congresso. Essa fala é o elemento detonador inesperado (mas previsível) que pode ser considerado a principal prova de envolvimento direto de Trump nos episódios que se seguiram.


Internamente, esse quadro de polarização da era Trump pode se ampliar, com a extrema direita ganhando espaço?


A extrema direita corre o risco de perder espaço porque seu principal agente, o presidente Trump, deixa o poder derrotado e perde seu palco. Sua suspensão definitiva do Twitter retira de Trump seu principal canal de comunicação. Muitos deputados e senadores republicanos se descolaram de Trump após a tentativa de golpe contra o Congresso. Uma tentativa de salvar sua reputação, mesmo tendo sido conivente com as barbaridades ditas e realizadas pelo presidente, especialmente em relação à pandemia. Diante disso, a tendência é a extrema direita perder espaço. Mas isso não significa que a polarização diminua ou o risco de enfrentamento desapareça. O conflito está instalado e caberá aos republicanos moderados manter pontes de diálogo com os democratas - sobretudo agora que estes têm a maioria nas duas casas legislativas.


Você acha que o Partido Republicano deve passar por algum tipo de revisionismo?


O Partido Republicano está em crise. Houve uma aposta majoritária no apoio em Trump e há políticos que já disputam o eleitorado do presidente derrotado, mas ainda popular, para as próximas eleições legislativas. O problema é que esse eleitorado mais fiel e fanático é antidemocrático. Então esses políticos que seguem apoiando Trump para capitalizar sua base eleitoral estão se colocando em uma armadilha difícil de sair. É possível que a ala moderada, mais tradicional dos Republicanos, se imponha e recupero o controle partidário para afastar Trump e minar suas pretensões de retorno. Uma hipótese de criação de um novo partido por Trump não estaria descartada, mas isso diminuiria muito as chances de vitória, mesmo em nível estadual e distrital.


O endurecimento de tendências dentro do Partido Republicano — ou de seu eleitorado — é algo novo ou podemos dizer que tem origens no Tea Party, de Sarah Palin?


O Tea Party foi uma manifestação conservadora, mas não apontava para uma quebra do sistema político. O que Trump representa é um extremismo populista que vê no Partido apenas um instrumento para chegar ao poder. O partido não é uma fonte de valores, de ideias e de princípios. O partido republicano foi instrumental para Trump, é descartável nesse sentido. Daí o risco de o partido manter seu apoio a Trump, sobretudo após o legado maldito que ele deixa na presidência.


Faltam duas semanas para a posse de Joe Biden. Você acredita que haja clima para a deposição de Trump antes disso? Seria recomendável que isso acontecesse?


Se nos colocarmos como observadores no futuro, daqui a dez, vinte anos, olhando o que aconteceu nesses dias, a pergunta seria: "Qual foi a reação dos congressistas e do Partido Democrata diante das ações infames e criminosas do Trump?" Me parece correto que haja uma pressão para renúncia e retirada forçada de Trump por incapacidade, mas nenhuma das duas tem chance de prosperar. Resta a abertura do impeachment na Câmara, com respaldo de parte dos deputados republicanos que não querem ficar maculados com a pecha de golpistas e criminosos. Há o sentimento de usurpação do Congresso, fato gravíssimo se olharmos pelo princípio da separação de poderes. Então, mesmo sendo inviável retirar Trump, o processo de impeachment é um fato político importante e necessário com resposta à conduta de Trump para reduzir e deslegitimar sua postura anti-democrática e talvez - a depender de injunções políticas e legais - impedir que possa continuar na política.


Qual o impacto da vitória de Biden para a América Latina?


A nomeação do diplomata Antony Blinken para a chefia do Departamento de Estado e de Juan González para cuidar da América Latina no Conselho de Segurança Nacional por Joe Biden indicam que o tema ambiental será chave na diplomacia global e com a região Latino-americana. A pressão sobre o Brasil será grande, mas dificilmente haverá confrontos abertos. A experiente diplomacia americana certamente buscará outros interlocutores no congresso, na sociedade civil e nos estados para fortalecer a pressão interna sobre o Presidente Bolsonaro e suas políticas anti-ambientais. Mas não há clima para parcerias estratégicas, e pode haver uma marginalização do Brasil em detrimento de outros governos da região.


Gostaria que você, que estava nos Estados Unidos quando da posse de Trump, fizesse uma resenha breve sobre o saldo desses quatro anos, tanto internamente como na relação com o resto do mundo.


Cheguei a Washington, DC, com minha família, para um período de cinco meses de pesquisa na American University, em 17 de janeiro de 2017, a três dias da posse de Trump, evento que acompanhamos pela TV. Dias depois participamos da Marcha das Mulheres realizada no Washington Mall, em frente ao Capitólio, um dos mais importantes eventos civis da história recente dos EUA. Ali já se podia perceber o embate que haveria entre a sociedade civil democrática e um Trump racista, misógino e incitador da violência. Nos quatro anos que se seguiram, Donald Trump apenas confirmou sua sanha de destruir as instituições americanas em nome de aumentar seu poder e impor a sua vontade. Foi barrado inúmeras vezes pelo Congresso e pelo Judiciário. Testou ao limite ou além dele as instituições governamentais e civis do país, que são fortes e resistiram. Mas em alguns casos saíram esgotadas e alquebradas de tanta luta. E a grande vitória de Trump foi alterar a composição da Suprema Corte para criar uma maioria conservadora (que talvez não estique tanto a corda num cenário de domínio político democrata, ao menos no curto e médio prazos). No campo externo, a perda de influência dos EUA é gritante. Seu isolamento em questões de comércio, meio ambiente e migrações agravou a perda de liderança e protagonismo que o país já vinha sofrendo desde antes. Movimentos pirotécnicos como a aproximação com a Coreia do Norte não resolveram o problema e apenas tiraram o foco das questões centrais. A política externa dos EUA terá dificuldade para se recompor e terá que atuar muito com outros atores além dos governos para restabelecer o tecido de diálogo e confiança que permitem algum grau de influência externa. O tema da mudança climática será central e aglutinador de interesses. Por fim, a perda de prestígio internacional dos EUA é muito mais difícil de recuperar do que a perda de poder. Mas o poder na política internacional não se sustenta, pela via democrática, sem prestígio.


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