'O ECA nos tornou mais humanizados enquanto sociedade. Esse foi o grande salto', diz promotora

Paula Trindade era promotora da Infância e Juventude em Santos quando o Estatuto da Criança e do Adolescente estava sendo implantado, há 30 anos.

Por: Arminda Augusto  -  13/07/20  -  01:24
Atualizado em 19/04/21 - 18:17
  Foto: Carlos Nogueira

Paula Trindade atuava como promotora da Infância e da Juventude em Santos no momento em que estava sendo implantado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei federal que substituiu o então Código de Menores. Tudo era novo e não se tinha referência sobre por onde começar a tirar do papel uma legislação tão diferente. De personalidade forte, a então promotora “comprou briga” com prefeitos e autoridades, em busca de criar mecanismos que garantissem os direitos fundamentais ali previstos. Ela está aposentada há 15 anos, mas relata um pouco sobre essa história. O ECA completa 30 anos amanhã.


A senhora era promotora da Infância e Juventude no exato momento da implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente. O que havia naquela época para lidar com esse público?


Tínhamos vários abrigos. Lembro que a primeira reunião que eu fiz foi com os responsáveis pelos abrigos, que não eram públicos, mas tinham parceria com o poder público. Tínhamos um Judiciário que funcionava no esquema do Código do Menor. Não havia programas sociais para acompanhar as crianças em situação irregular (era assim que se chamavam as crianças em situação de risco). O juiz da Infância e Juventude exercia as funções que hoje atribuímos ao conselheiro tutelar.


E se não havia programa para atender essa criança e adolescente em situação de risco, também não havia para a família desse jovem?


Absolutamente. Era o comissariado de menores. Era assim que se trabalhava.


Nessa época, quais eram os principais problemas envolvendo esse público?


Os maus tratos no seio da família, com certeza, por violência ou abandono. E a medida era a retirada dessa criança para abrigos. Se não houvesse forma de retornar à família, essa criança ia para adoção. E aí havia - e ainda há - aquele problema que crianças mais velhas dificilmente conseguem uma família que queira adotá-la. A preferência é sempre por bebês, e não os mais velhos.


E os abrigos davam conta de acolher a todo esse público?


Nem sempre. Muitos abrigos foram fechando, sem condições de se manterem. É dessa época o crescimento da população de adolescentes pelas ruas da Cidade. Era caótica a situação. Sem abrigo, era muito difícil encaminhar essas crianças e adolescentes em risco.


Mas além das questões de maus tratos, também havia os jovens que praticavam atos infracionais. Como eles eram encaminhados?


A maioria era do sexo masculino. Os atos infracionais eram de pequenos furtos. Eles eram apreendidos pela polícia civil, encaminhados para a Promotoria, ouvidos, os pais eram chamados e levavam seus filhos de volta, mediante termo de responsabilidade.


Nessa época ainda era Febem.


Sim, era Febem. E esses jovens que praticavam pequenos delitos passavam por um programa da Febem de liberdade assistida, dentro do Fórum de Santos, que consistia na aplicação de algumas medidas socioeducativas. Mas naquela época, a maioria dos atos eram pequenos furtos, e quase todos para comprar drogas.


Que tipo de droga?


Naquela época, ainda era a maconha que predominava. Quando veio o crack pra Santos, a situação começou a ficar muito complicada. Estamos falando de meados dos anos 90. E foi com a chegada forte do crack que os atos infracionais começaram a ficar mais violentos. Não só por causa do crack, mas porque eles voltavam do período de internação na antiga Febem muito mais violentos.


Mas o que diferenciava a Febem antes do ECA e depois do ECA?


Na época do Código de Menores, misturava-se crianças e adolescentes carentes com infratores. E não havia muitas vagas de internação na Baixada, só mesmo em Guarujá. Então, a maioria era encaminhada para a Capital, longe das famílias. Lá, a gravidade dos atos infracionais era muito maior, e os meninos daqui voltavam piores. Nessa época também ocorreu um fato importante: vários empresários locais fizeram doação em dinheiro e o Estado montou a primeira Delegacia da Infância e Juventude, ali na Rua Bittencourt.


Houve algum tipo de resistência para implantar o ECA aqui, já que havia - e ainda há - um conceito de que esse conjunto de novas regras dava impunidade demais aos jovens infratores?


Vamos dividir opinião pública do poder público. A opinião pública era, sim, desfavorável ao ECA.


Por quê?


A propaganda que se fez sobre o estatuto dava a entender que crianças e adolescentes podiam tudo, e pai e mãe não teriam mais como controlar os filhos, nem as escolas conseguiriam garantir a disciplina.


A divulgação do ECA foi distorcida, então?


Foi um desserviço a forma como foi anunciado o conjunto de medidas previstas no ECA. Dizer que crianças e adolescentes tinham direito criou uma resistência da sociedade, porque pais e escolas entenderam que tinham perdido o poder sobre esse público. E era exatamente o contrário: a criança tinha direito à educação, pelos pais e pela escola. Nesse contexto, os abrigos começaram a fechar.


Por quê?


Porque a partir do ECA, eles teriam uma série de obrigações em relação a crianças e adolescentes, e isso complicou o sistema que os abrigos da época adotavam. Esse foi só um dos fatores, claro.


A senhora falou sobre resistência com a sociedade e com o poder público. Como foi com o poder público, que também não estava estruturado para aquela nova realidade?


Quando eu cheguei, em 92, não havia nenhuma das estruturas previstas no ECA. Só tínhamos o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Precisávamos montar os conselhos tutelares, e aí eu contei muito com o prefeito David Capistrano. O primeiro conselho tutelar foi em 1993, com a primeira eleição. Existiam o da zona leste e o da zona noroeste. Depois, criamos o da zona central, principalmente por conta dos cortiços, das crianças que viviam ali.


E com a Câmara Municipal, o relacionamento era bom?


Muito bom. Na época, a presidente da Câmara era a Maria Lúcia Prandi, com quem tínhamos um excelente relacionamento. Nós conseguimos um avanço bom também quando a Câmara acolheu um pedido da Promotoria: de que os projetos relacionados à criança e adolescente tivessem prioridade na tramitação. A Câmara mudou o regimento interno para incluir esse item. Conforme eu ia aprendendo sobre o ECA, ia procurando implantar aqui em Santos, fazendo exigências e com muita reunião, muita conversa.


O Fundo da Criança e do Adolescente também não existia, certo?


Veja, nessa época, todo recurso proveniente de multas aplicadas a estabelecimentos que infringiam a legislação da criança e adolescente ficava depositado em juizo. Nós propusemos a transferência desses recursos para o fundo, com toda a regulamentação, e a vinculação ao Conselho Municipal da Criança e do Adolescente. Só o conselho poderia liberar recursos para programas específicos. Na época, o David Capistrano foi o primeiro prefeito do Brasil a receber o título de Amigo da Criança, justamente por esse modelo que havíamos criado. Ele tinha disposição para atender a demanda proposta pela Promotoria. Parte dos programas criados até 96 foram desestruturados depois.


O ECA foi, então, um divisor de águas na forma como se tratava esse público?


Exatamente, um divisor de águas, na medida em que reconheceu direitos fundamentais a crianças e adolescentes, como educação, saúde... Aqui não havia direitos fundamentais como esses.


Muitos adolescentes da Fundação Casa estão fora da escola quando são apreendidos. Então, o problema ainda não foi plenamente resolvido.


Isso é uma vergonha, depois de 30 anos a gente ainda ter esse problema. Crianças e adolescentes têm que estar em período integral na escola, independente da classe social. E precisa haver a profissionalização dos jovens no ensino médio. A função dos conselheiros tutelares é essa: apontar quais são as carências de cada região. Os conselhos tutelares são a maior conquista do ECA.


Quando o jovem sai da internação na Fundação Casa tem dificuldade para encontrar emprego e até vaga em escola.


Então, é preciso criar programas específicos para cada demanda, uma rede que preveja desde apoio à família e suas necessidades até a reinserção desses jovens depois da internação. E esses programas precisam ser perenes, não podem ser interrompidos quando acaba um governo.


Muitos educadores dizem que o estatuto deu liberdade demais, e não se consegue disciplinar um aluno agressor.


Veja, há diversos instrumentos que precisam ser aplicados desde o primeiro desvio, como a justiça restaurativa, que é muito boa. Tem que atender preventivamente, quando começa a se perder.


O que a senhora mudaria no ECA, se fosse possível?


Olha, ainda não se conseguiu conscientizar o poder público e a sociedade sobre a importância do sistema integral de atendimento a esse público.


Ou seja, o que o ECA previu há 30 anos ainda não foi totalmente aplicado.


Exatamente, por isso não dá para criticar. Se você não tem creche em quantidade suficiente, escola em período integral, serviço de saúde para todas as crianças e adolescentes, não dá para criticar ou mudar. Enquanto a gente não evoluir para fazer política, e não politicalha, não vamos sair do lugar. Vamos enxugar gelo.


Mesmo sem todos os mecanismos previstos no ECA implantados, a senhora considera que estamos melhor hoje, enquanto sociedade, do que antes do estatuto?


Com certeza. Nos tornamos mais humanizados enquanto sociedade, e esse foi o grande salto.


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