Júlio da Balinha ganha a vida há 36 anos em semáforos do Boqueirão em Santos

Cadeirante de 58 anos teve paralisia infantil e uma bela história de superação

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  15/01/21  -  16:43

“Quer uma balinha hoje, senhor?”, “Vai uma balinha, querida?”. Há 36 anos, com um ou outro período de ausência, o sinal vermelho no semáforo é o passe-livre para Júlio César Ferreira entrar em ação e ganhar a vida. Quem passa na Rua Minas Gerais com Avenida Conselheiro Nébias, sabe: chova ou faça sol, lá estará ele, com as balinhas no colo e o corpo na cadeira de rodas, consequência da paralisia infantil, contraída aos nove meses de idade.


Clique e Assine A Tribuna por apenas R$ 1,90 e ganhe acesso completo ao Portal e dezenas de descontos em lojas, restaurantes e serviços!



Sim, a poliomielite. Júlio, hoje com 58 anos, nasceu quando a vacina ainda engatinhava no mundo. Por isso, ao ouvir sobre gente que nega a imunização, seja de pólio, sarampo ou covid, é taxativo: “Totalmente errado. Quando sair essa (vacina contra o coronavírus) vou ser o primeiro da fila”.


Fala quem está acostumado a se impor para abrir caminho na vida. Afinal, logo aos cinco anos a doença se mostrou. Júlio passou por cinco cirurgias para acomodar quadris e membros inferiores. Foi engessado do pescoço aos pés: apenas braços ficaram livres.


Com a primeira batalha vencida, vieram outras, como é praxe e costume a quem está vivo.


Mas nem todo mundo, com ou sem limitações físicas, acorda às 4 horas da manhã, aos 14 anos, para ir trabalhar como cobrador de ônibus. Júlio se dividia entre a necessidade e a paixão recém descoberta pelo basquete. “A gente tentava arrecadar dinheiro no semáforo, vendendo balinhas, para montar um time”.


Mas um time só sairia muitos anos depois da vida mudar drasticamente, durante uma viagem a Piracicaba.


Adeus ao pai


Caçula de três filhos, viu a família se desintegrar quando tinha 11 anos. “Minha mãe achava que a vida era um baile, ela preferiu esse caminho”, a voz titubeia. “Mas sempre a amei, até o fim”.


O pai assumiu os filhos. Garçom, trabalhava em bufês chiques do Morumbi. Saía para o trabalho às 15 horas de um dia, só voltava às sete do outro. Atendia clientes ilustres, como Silvio Santos e Hebe Camargo.


“Meu pai me levava na fisioterapia, natação, ele brigava por mim”. Em uma dessas lutas, conseguiu com Hebe um novo par de muletas, entregues ao vivo, em rede nacional. “Ela: ‘seu filho é uma gracinha”, brinca.


Era 1981, o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Em Piracicaba, Júlio estava envolvido em trabalhos de conscientização sobre o tema, quando um policial rodoviário foi ao alojamento com a notícia: o pai havia morrido. “Quando consegui chegar, ele já havia sido enterrado”, o olhar segura uma lágrima.


Santos, sempre santos


Abalado, resolveu deixar a Capital. O destino? Santos, que já conhecia de suas andanças. Aos 19 anos, não haveria limitação que o impedisse de buscar a felicidade. Foi, e é, difícil. Acolheu a mãe e a irmã mais velha, que trouxe de São Paulo; aqui participou de outro time de basquete, na Associação dos Deficientes Físicos de Santos (ADFISA), com mais viagens e aventuras pelo Brasil; casou, teve dois filhos, hoje com 32 e 26 anos e encaminhados; foi até candidato a vereador em 2004 e 2012, como Júlio da Balinha.


Após morar em pensões, quartos e casas alugados, em 2014, pelo Minha Casa, Minha Vida, conseguiu o imóvel seu, adaptado, no térreo do Conjunto São Vicente 2, no Samaritá.


“Só não sobe em poste”


O maior sonho, hoje, é conseguir a aposentadoria. O processo já está no Juízo Federal, em São Vicente. “Quero descansar e curtir um pouco com a minha velha”. Merecido: além de cobrador, já trabalhou em consórcio, em farmácia, em posto de gasolina. Mas foi vendendo balas nos semáforos que construiu a sua vida. Nos bons tempos, dava mais dinheiro. “Deficiente pode trabalhar, só não consegue subir em poste”.


A frase resume a relação ambivalente de Júlio com a inclusão. Se antes, o deficiente era visto como o ‘coitadinho’, hoje é tratado como qualquer um. “É bom ser incluído na sociedade. Mas ela (inclusão) tira o seu problema, te considera normal”.


Para além de deficiência ou inclusão, Júlio pede que comprem as balas pelo seu esforço, pela sua simpatia e não por estar em uma cadeira de rodas. Ou ao contrário: “Fale ‘não’, mas não vire a cara, não feche o vidro do carro. Isso me deixa tão magoado...”


Logo A Tribuna
Newsletter