Paulo Henrique Cremoneze: Não se apequenar, não se “acanalhar”

A movimentação de cargas cresceu, mas não pode de modo algum tirar dos brasileiros o senso de realidade

Por: Paulo Henrique Cremoneze  -  08/07/20  -  22:23

“Envilecimento, acanalhamento, não é outra coisa que o modo de vida que resta àquele que nega ser o que tem que ser. Esse seu ser autêntico não morre por causa disso, e sim se converte em sombra acusadora, em fantasma, que o faz constantemente sentir a inferioridade da existência que leva em relação à que tinha que levar. O envilecido é o suicida sobrevivente” - José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas


Em minha última coluna, intitulada Crescer, apesar dos governos, exaltei os números do Porto de Santos no primeiro semestre deste ano infeliz. Elogiei a iniciativa privada brasileira, critiquei os governantes e legisladores brasileiros e deixei uma mensagem geral de otimismo. Otimismo, sim, mas calibrado pelo bom-senso, pois temia uma queda nos bons resultados a partir de abril.


Imaginei a queda por causa dos efeitos econômicos do distanciamento social – imprescindível para enfrentar a pandemia Covid-19 – e, principalmente, pelo cenário político nacional, absurdamente confuso, para não dizer indecoroso. Em um momento em que o mundo todo enfrenta a mais grave pandemia dos últimos  cem anos, o Brasil se dá ao despudor de viver um pandemônio político. 


Porém, em que pese tudo isso, os números do Porto de Santos voltam a surpreender positivamente. Sim, por incrível que parece, o Porto dá sinais que a economia brasileira ainda se mostra vigorosa, ao menos em alguma de suas muitas medidas. 


No último dia 21, o nosso querido caderno Porto & Mar estampou uma interessantíssima matéria com o seguinte título Apesar da pandemia, Porto bate recorde. E este recorde não foi o mesmo que reportei dias antes, mas outro, a partir de abril. Números muito bons, sobretudo se for considerado o confuso e sombrio cenário atual.


O Portal G1, no dia seguinte, destacou para todo o Brasil Porto de Santos não sente crise econômica e registra maior movimentação de cargas.


Sim, o Porto de Santos, o mais importante do Brasil e da América do Sul, mostra sua força e aponta um quase inacreditável crescimento de 26,8% de aumento em relação ao mês de abril de 2019.


Motivos para ficarmos contentes e animados? Sim. Mas, insisto, é preciso cuidado. Números não mentem, mas podem enganar, dependendo da vista do ponto. Longe de mim o ceticismo, muito menos o pecado da desesperança, mas é preciso enxergar o todo. 


Explico: na matéria do caderno Porto & Mar, logo nas primeiras linhas, fica bem claro que essa magnífica movimentação de cargas se deu ao crescimento econômico da China. 


A produção agrícola brasileira é sempre muito boa e praticamente sustenta o País. Os chineses têm comprado muito mais grãos e outros bens produzidos pelo agronegócio brasileiro. Grande necessidade de um lado e abundância de oferta do outro e temos a combinação perfeita. Além disso, a taxa do dólar alto favorece e muito as exportações e os interesses por produtos brasileiros, não só pelos chineses, mas também por europeus.


A movimentação de cargas cresceu, sim, e isto é muito bom, mas não pode de modo algum tirar dos brasileiros o senso de realidade. As exportações cresceram muito, mas as importações caíram, indicando que a produção nacional e o consumo interno perderam vigor. Sinal amarelo, quase vermelho, de preocupação.


Já se sabe que, desde o início do ano, cerca de US$ 25 bilhões saíram do País. Isso não é porque o governo federal baixou substancialmente a taxa de juros, mas porque não é capaz de inspirar confiança aos grandes investidores internacionais e nacionais. 


Economia é uma arte complexa, por vezes obscura, indecifrável, extremamente subjetiva, apesar do esforço em se mostrar como objetiva. Uma coisa, porém, é certa: ancora-se na confiança. Quando a confiança, justa ou injustamente, é minada, ela é esvaziada e se torna claudicante. 


O descuido com o meio ambiente, a desordem no enfrentamento da pandemia, a falta de firme orientação nos assuntos econômicos e o constante clima de embate com a imprensa e os outros dois Poderes, em muito incentivado pelo Palácio do Planalto, desmotivam demais os investimentos externos e internos, a ponto de especialistas em todo o mundo considerarem o Real, hoje, uma moeda tóxica.


Justo o Real, que foi motivo de orgulho, elevou a economia do País e permitiu que os empresários brasileiros saíssem da periferia dos jogos econômicos mundiais, se tornou, por conta do pandemônio político, alvo de desconfiança e de grande receio.


Receio que os números bons do Porto de Santos poderão ser pífios no final do ano, se o governo não mudar sua atitude. O empobrecimento geral é algo tangível. E a culpa não será da pandemia, mas da perda de valor da moeda. Uma perda maior que a da moeda argentina ano passado.


O Brasil viveu décadas de populismo de um viés ideológico. Agora, vive o de outra matriz política. Ambos lamentáveis e ruis. 


Por isso, termino com um alerta fundado na frase de Ortega y Gasset que citei inicialmente. Trata-se de grande vilania, de acanalhamento, não seguir sua autêntica vocação e não ser o que poderia ser. Isto serve para pessoas e para nações. O Brasil nasceu vocacionado à grandiosidade, mas em algum momento da sua história perdeu o rumo e entrou em uma espiral de mediocridade. Uma mediocridade nociva, quase atávica e que a cada dia baixa um patamar na escala da pequenez. 


Se o País não abrir os olhos e deixar de lado esse infantilismo que há muito o caracteriza, nem mesmo a patética crença de um futuro bom lhe restará. O Brasil continuará a ser “um suicida sobrevivente”, uma caricatura de si mesmo. Deixará de ser um país para ser um coletivo de pessoas convertido em “sombra acusadora, em fantasma, que o faz constantemente sentir a inferioridade da existência que leva em relação à que tinha que levar”.


Já não aspiro ver o Brasil um país de primeiro mundo, com padrão de vida digno para seu povo e fiel a sua inicial vocação. Apenas não desejo que ele continue a ser o pior país entre os importantes do mundo. Não quero viver na terra do acanalhamento. Acredito que é isso que também o amigo leitor deseja para o seu, o nosso, país.


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