Paulo Henrique Cremoneze: Contra privilégios de armadores e transportadores marítimos

Vivemos em uma sociedade de riscos, e os transportadores marítimos são potenciais causadores de danos. Por isso, deles se exige especial cuidado no exercício das atividades

Por: Paulo Henrique Cremoneze  -  29/09/20  -  19:04

Fez um ano que as praias brasileiras, especialmente as do Nordeste, foram contaminadas por enorme vazamento de óleo de um navio. E até o presente momento, nenhuma punição foi aplicada ou reparação de dano efetuada. Em verdade, sequer se sabe qual foi o navio responsável por tamanho dano ambiental.


O aniversário inglório do maior desastre ambiental marítimo de história do Brasil é o ponto de partida desta breve reflexão.


O transporte marítimo internacional de cargas tem de ser urgentemente repensado. Trata-se de um segmento importantíssimo para a economia mundial, mas que carece de bons marcos regulatórios. Ainda hoje, muitos transportadores marítimos, armadores, atuam de forma temerária, e não respondem pelos danos e prejuízos que causam. Isso é inadmissível. 


No mundo atual, não há mais como admitir que toda uma categoria empresarial goze de benefícios ilimitados e de responsabilidades limitadas.


Vivemos em uma sociedade de riscos, e os transportadores marítimos são potenciais causadores de danos. Por isso, deles se exige especial cuidado no exercício das atividades.


E nem se diga que existem convenções internacionais de Direito Marítimo, pois todas, com maior ou menor intensidade, concedem muitos privilégios a armadores e os protegem de responsabilidades mais robustas.


Felizmente, o Brasil não é signatário dessas convenções (e a única que assinou, não ratificou), permitindo ao seu ordenamento jurídico um tratamento mais rigoroso de alguns temas do Direito Marítimo e a legítima proteção dos exportadores, importadores e seguradores de cargas nacionais. 


Mas isso não basta, pois o tratamento mais rigoroso se dá apenas nas relações entre donos ou seguradores de cargas e transportadores, sendo todos os demais temas uma espécie de mar aberto, com ondas de irresponsabilidades.


Passou do tempo de os armadores assumirem responsabilidades e arcarem com os danos que causam, sejam eles ambientais, materiais ou pessoais.


Um bom meio para que isso possa bem ocorrer surge pelo reconhecimento de clubes de proteção e indenização como devedores solidários ou, pelo menos, subsidiários. Imputar responsabilidades aos clubes é algo que bem se ajusta aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e isonomia, e se mostra necessário para a busca constante do bem comum e da redução de assimetrias.


Merecem revisão também os registros dos navios. Pôr fim às tais “bandeiras de aluguel ou de conveniência” é passo importante e decisivo para se ordenar moralmente o universo dos transportes marítimos. Quando analisamos a questão das bandeiras de aluguel com tudo o que diz respeito ao tempo atual e aos avanços do Direito, especialmente no campo da responsabilidade civil, temos que aquelas não mais se ajustam a estes e que as mudanças normativas se fazem necessárias.


Até que a comunidade internacional consiga criar elementos normativos para proteger donos de cargas, pessoas e o meio ambiente de forma eficaz, impondo não mais privilégios, mas responsabilidades severas aos armadores (transportadores), é necessário que o Brasil tome as devidas medidas para dar ao assunto um manto de justiça.


Tomo a liberdade de sugerir ao Governo Federal e ao Congresso que criem uma Guarda Costeira, ouçam os especialistas no assunto, criem normas de proteção específica ao meio ambiente, ao patrimônio dos usuários dos serviços de transportes e às pessoas em geral, potenciais vítimas diretas ou indiretas das atividades. Proteger não é inibir o negócio de transportes, mas revesti-lo de justos deveres.


Outro meio de se ter maior equilíbrio na situação depende de um olhar diferenciado por parte do Poder Judiciário. Por olhar diferenciado se entenda não permitir que armadores causadores de danos se beneficiem de casuísmos formais ou de cláusulas contratuais abusivas.


A Justiça é uma das melhores modeladoras sociais que existe, e ela pode e deve fazer a diferença se compreender a volatilidade do segmento de transportes e seu enorme potencial para a promoção de danos, muitas vezes não reparados.


O rigor, normativo e judicial, a ser empregado aos armadores não beneficiará apenas o meio ambiente, os donos e seguradores de cargas, os terminais, os trabalhadores marítimos e portuários, a sociedade em geral, mas também a eles próprios, ao menos os que são sérios e respeitáveis, capazes de responder ao rigor com eficácia, eficiência e comprometimento diante dos danos.


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