Mauro Penteado e Gabriel Furtado: A BR do Mar e o futuro da cabotagem no Brasil

A cabotagem é ainda tida como uma alternativa logística particularmente sustentável e segura

Por: Mauro Bardawil Penteado & Gabriel Rapoport Furtado &  -  07/10/20  -  18:23
Incentivos à cabotagem e fortalecimento da multimodalidade
Incentivos à cabotagem e fortalecimento da multimodalidade   Foto: Carlos Nogueira/ AT

Sabe-se que o litoral brasileiro, distribuído em quase 7.500 km de extensão, figura entre as maiores superfícies litorâneas nacionais – ocupando, ainda, o papel de maior costa atlântica do mundo. Das 27 unidades federativas do país, 17 estados possuem acesso direto ao mar, sendo que, na maioria deles, a capital se situa na zona costeira, ou muito próxima ao litoral – isso sem falar nas grandes bacias hidrográficas que estendem o potencial da navegação ao interior do território do Brasil.


Tal panorama evidencia o enorme potencial da cabotagem para a movimentação de cargas e para a composição da matriz de transportes do país. Para além de um modal com custos potencialmente mais baixos do que, por exemplo, o transporte rodoviário, a cabotagem é ainda tida como uma alternativa logística particularmente sustentável e segura. Não obstante, de acordo com dados do último Plano Nacional de Logística (PNL) – referente aos anos 2015-2025 –, a cabotagem responde por pouco mais de 10% da matriz de transportes do país.


Assim, com o objetivo de propulsionar, para, ao menos, 30%, a participação da cabotagem na logística nacional, o Governo Federal encaminhou ao Congresso um verdadeiro Programa de Incentivo à Cabotagem, conhecido como “BR do Mar”. Trata-se do PL 4.199/2020, que atualmente tramita, em regime de urgência, na Câmara dos Deputados.


O PL parte de um diagnóstico robusto sobre os gargalos que teriam obstado o desenvolvimento e o dinamismo deste mercado nos últimos anos – particularmente sob o marco da Lei nº 9.432/97. Seriam eles: (i) sob a perspectiva da frota: o lastro, em embarcações nacionais, necessário para a constituição das Empresas Brasileiras de Navegação (EBN); (ii) sob a perspectiva dos custos do serviço: a disciplina da circularização e dos afretamentos por tempo, impondo ao setor a hipertrofiada estrutura de custos nacional e insulando o mercado interno da estrutura internacional de custos; (iii) sob a perspectiva da indústria naval: a proteção e o fomento a um segmento em que a concorrência internacional (particularmente com a capacidade de produção chinesa) já não mais poderia ser alcançada; e (iv) sob a perspectiva da infraestrutura portuária: a rigidez do regime de ocupação de áreas portuárias, cujos instrumentos de exploração (basicamente o contrato de arrendamento) ofereciam muito pouca flexibilidade para a experimentação de novas soluções logísticas envolvendo a cabotagem.


Diante deste quadro, o PL 4.199/2020 propõe a criação do “Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem – BR do Mar”, cujos objetivos, nos termos do art. 1º, envolvem, entre outros: (i) ampliar a oferta e melhorar a qualidade do transporte de cabotagem; (ii) incentivar a concorrência e a competitividade na prestação do serviço; (iii) ampliar a disponibilidade de frota no território nacional; (iv) revisitar a vinculação das políticas de navegação de cabotagem em relação às políticas de construção naval; e (v) incentivar investimentos e operações que atendam a mercados ainda não existentes ou consolidados na cabotagem brasileira.


Para fins de habilitação no Programa, a empresa interessada deverá, consoante disposto no art. 3º do PL, estar autorizada para atuar como EBN, sendo que a qualificação será concedida por ato do Ministro da Infraestrutura, que deverá, ainda, regulamentar a disciplina de concessão para tal habilitação.


Quanto aos desafios a serem superados para o desenvolvimento do mercado de cabotagem, o PL buscou oferecer soluções específicas para cada uma das frentes mencionadas.


Quanto à frota, uma série de inovações propostas reformulam fundamentalmente a estrutura do setor. Para a expansão da oferta de embarcações de cabotagem e de empresas autorizadas, o art. 21 do PL propõe alteração da Lei nº 9.432/97 para, entre outras modificações, determinar-se o fim do lastro para a constituição de uma EBN, isto é, facultando a qualificação como EBN de empresa que não possua embarcações próprias, mas tão somente afretamentos a casco nu (modalidade em que a embarcação é afretada, sob a bandeira brasileira, para uso e controle da contratante, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação). É criada, adicionalmente, a figura da Empresa Brasileira de Investimento na Navegação, cujo objeto é o exclusivamente o afretamento de embarcações para empresas brasileiras ou estrangeiras, sem sua efetiva operação.


Quanto aos custos do serviço, o PL busca dinamizar a disciplina dos afretamentos por tempo (nos quais a embarcação é recebida sob bandeira estrangeira, já armada e tripulada, sujeita, portanto, aos custos de sua bandeira de origem – incluídos os respectivos custos de capital, trabalhistas, tributários e securitários, combinando-se para a prestação de serviços a preços até 70% inferiores). Todavia, com o objetivo de assegurar a regularidade do serviço (em face da maior exposição ambicionada ao mercado internacional e suas flutuações), a BR do Mar buscou, em seu art. 5º, apontar as condicionantes para a realização do afretamento por tempo. Inicialmente, cumpre destacar que a empresa habilitada no Programa poderá afretar embarcações exclusivamente de subsidiária integral estrangeria por ela controlada – e desde que as embarcações sejam (i) de propriedade da subsidiária ou (ii) estejam em sua posse sob contrato de afretamento a casco nu.


Ademais, o § 1º do art. 5º descreve as hipóteses em que o afretamento por tempo poderá ser realizado, incluindo (i) a substituição de embarcações de tipo semelhante que estejam em construção ou sob modernização ou reparo; (ii) o atendimento a contratos de transporte de longo prazo; e (iii) a prestação de operações especiais de cabotagem, por prazo de até quatro anos, para o atendimento de rotas ou mercados ainda não contemplados pela cabotagem.


Ainda, no afretamento a casco nu de que trata o PL, as embarcações ficarão sujeitas à obrigatoriedade de utilização de pelo menos dois terços da tripulação composta por brasileiros, em cada nível técnico do oficialato, incluindo necessariamente o comandante, entre outros postos estratégicos para a condução da embarcação.


Finalmente, ainda sob a perspectiva dos custos, propõe-se a suspenção total do pagamento de uma série de tributos federais, entre os quais: (i) o Imposto de Importação – II; (ii) o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI; (iii) o PIS/Pasep-Importação; (iv) a Cofins-Importação; (v) a CIDE-Combustíveis; e (vi) o Adicional de Frete para a Renovação da Marinha Mercante – AFRMM.


Quanto à indústria naval, o PL visa ao fortalecimento e ao aumento da escala do segmento de manutenção e reparos nos estaleiros brasileiros – mediante a utilização de recursos do Fundo da Marinha Mercante, inclusive por estrangeiros, para a docagem, conversão, modernização ou reparação, de embarcações próprias ou afretadas, em estaleiros nacionais.


Finalmente, sob a perspectiva da infraestrutura portuária, sem prejuízo das inovações introduzidas pela Lei nº 14.047/2020 (resultante do PLV 30/2020), a BR do Mar busca consolidar, nos termos do seu art. 16, a autorização para uso temporário, pelo prazo de até quatro anos, de áreas e instalações portuárias, localizadas na poligonal de portos organizados, em operações especiais de cabotagem (buscando, assim, fomentar o uso da cabotagem em cargas, rotas e regiões nas quais o modal ainda não se consolidou).


Com tais medidas, o Ministério da Infraestrutura espera que o mercado de cabotagem no país passe a crescer, desde logo, perto de 30% ao ano, com a duplicação do volume de contêineres transportados até 2022 e a ampliação de 40% da frota marítima dedicada à cabotagem nos próximos três anos.


Entretanto, após o trâmite inicial do PL, alguns pontos de atenção já ganham destaque, sobretudo no que diz respeito: (i) ao regime trabalhista e à segurança jurídica da contratação de tripulação brasileira em embarcações submetidas a bandeiras estrangeiras; (ii) à regulamentação posterior de conceitos estruturantes para o Programa, como os contratos de longo prazo; e (iii) às especificações, incluindo tonelagens e tipos de carga, habilitadas a se beneficiar do novo regime de afretamentos.


Assim, após o meticuloso trabalho do Ministério da Infraestrutura, após intensos debates com Ministério da Economia, caberá agora ao Congresso o refinamento e a definição dos contornos finais da BR do Mar.


*Mauro Penteado e Gabriel Rapoport Furtado são, respectivamente, sócio e advogado de infraestrutura do Machado Meyer Advogados.


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