E o navio que criminosamente danou praias brasileiras?

Mais um mês se aproxima do fim e, até agora, o Brasil não sabe qual foi o navio que cometeu o terrível crime ambiental que atingiu centenas de praias do Nordeste a algumas do Sudeste

Por: Paulo Henrique Cremoneze  -  04/03/20  -  21:38
E o navio que criminosamente danou praias brasileiras?
E o navio que criminosamente danou praias brasileiras?   Foto: (Ilustração: Monica Sobral)

Peço perdão ao amigo leitor, mas sou obrigado a servir café requentado.


A justa indignação ferve em meu coração e não me é dada outra coisa senão repetir assunto, muito importante, por sinal. Mais um mês se aproxima do fim e, até agora, o Brasil não sabe qual foi o navio que cometeu o terrível crime ambiental que atingiu centenas de praias do Nordeste a algumas do Sudeste.


Uma vergonha internacional! É inadmissível que, em pleno século XXI, o Brasil não tenha condições técnicas de descobrir quem lhe causou tanto mal. 


Minha indignação só faz aumentar com a pós-graduação que curso aqui na famosa Universidade de Salamanca, Espanha. Na universidade, que tem 802 anos e se conecta intimamente com o descobrimento da América, estudo uma disciplina chamada “Contratos e Danos”, parte do chamado Direito de Danos, por sua vez integrante da Responsabilidade Civil.


O que aprendo aqui parece distante da triste realidade brasileira, onde danadores se mantêm impunes por seus atos e fatos ilícitos.


Vivemos tempos de grandes mudanças e de enormes desafios, tempos da Quarta Revolução Industrial. A cada dia, o engenho humano se desenvolve e as atividades econômicas se fortalecem. Por mais que as tecnologias busquem a excelência, os ricos aumentam.


Tanto que o Direito também evoluiu substancialmente e, hoje, já se tem por certo, como um direito fundamental, o de ninguém ser vítima de um dano, algo muito maior e mais profundo do que o antigo neminem laedere.


Quem, como os armadores, os transportadores marítimos de cargas, que contam com clubes de proteção e indenização por detrás, manejam riscos potenciais têm que responder pelos danos e prejuízos causados, tenham ou não agido com culpa em um episódio danoso.


Vanguardista? Talvez, mas algo que tem que estar presente em toda e qualquer discussão séria a respeito da responsabilidade civil, seus desdobramentos e sua invulgar dimensão social. 


Muito aproveita atentar que, antes mesmo dessa visão mais recente e inovadora, o anseio pela necessidade de compensação justa do dano sofrido pela vítima e punição exemplar do seu causador já se fazia notar pelo princípio da reparação civil integral, presente em quase todos os ordenamentos jurídicos do mundo.


No caso específico do Brasil, o princípio se encontra taxativamente previsto no art. 944 do Código Civil e implicitamente presente no inciso V do art. 5º da Constituição Federal, que assegura a reparação civil ampla e integral. Considerando que o art. 5º trata dos direitos e garantias fundamentais e é marcado com o selo de cláusula pétrea, pode-se dizer que no Brasil a reparação civil integral é, mais do que um princípio de natureza civil, um direito fundamental constitucional, ancorado na cidadania.


Mas para que todo esse acervo legal possa ser aplicado, é necessário que se encontra o responsável.


O Direito Ambiental é tão importante no Brasil que é tutelado pelos Direitos Civil e Penal, sendo que, no Direito Penal, conta com a extraordinária hipótese de se punir criminalmente a pessoa jurídica do danador.


Mas do que adianta um ordenamento jurídico tão forte, se no mundo dos fatos o país se mostra ineficiente em descobrir quem danou sua costa?


Navios de carga operam riscos incomensuráveis. O sinistro do navio Prestige não foi o primeiro nem será o último, infelizmente. Os estragos provocados na costa espanhola se estendeu no tempo e no espaço. Um caso que se tornou emblemático para mostrar a necessidade de sistemas legais rigorosos, planos de contingência eficazes e capacidade de apuração dos fatos rápida e precisa. Ao que parece, o Brasil tem apenas o primeiro dos três itens.


Não se sabe que o navio causador do dano agiu com culpa ou mesmo com dolo. Sabe-se, porém, que sua conduta foi grave e reclama reparação integral. Ainda que não fosse grave a conduta, teria como tem que responder pelos prejuízos, pois o que importa não é as ações ou omissões de um transportador marítimo, mas seu potencial de risco, de dano.


A navegação é cada vez mais precisa e a tecnologia impressionante. Navegar não é uma aventura e a enorme lucratividade dos armadores lhes impõem iguais responsabilidade sociais. Por isso, não se pode de forma alguma relativizar um dano, um crime, de tal magnitude.


Como cidadão brasileiro eu tenho o direito e, mesmo, o dever moral de exigir das autoridades uma resposta enérgica, sendo o primeiro passo a identificação do navio responsável. E essa resposta não é para amanhã, nem mesmo hoje, mas ontem. 


Acrescento, também com fundamento no Direito Natural e na própria ordem moral, que a apuração do navio causador e a imputação de responsabilidade é imprescindível para a dignidade do Brasil. Em sendo mantido o atual estado das coisas, ter-se-á o absurdo benefício do autor do ato ilícito e o esvaziamento do direito da vítima, no caso a sociedade brasileira.


Aliás, dentro de todo esse contexto, é a vítima que tem que ser o alvo de todas atenções da hodierna responsabilidade civil, não o causador do dano. Na proteção máxima da vítima que reside o bem social e as funções restauradora, reequilibradora, principiológica e edificante do Direito, braço concreto da Justiça.


Termino saudando o bendito café requentado, esperançoso que mais gente se escandalize com o assunto e o não o deixe cair na vala comum e inglória do esquecimento, algo que costuma acontecer no Brasil.


As pessoas têm que cobrar das autoridades o esclarecimento dos fatos e as responsabilidades devidas, do contrário armadores, operadores portuários, portos não se sentirão incomodados à prestação de serviços seguros e pautados pela excelência. Que ninguém duvide ou se mostre ingênuo: a punição rigorosa é a melhor amiga da consciência e a verdadeira motivadora da excelência empresarial.


Logo A Tribuna
Newsletter