'Superbactérias podem causar infecções sistêmicas e levar à morte', diz Fábio Sellera

Em entrevista para A Tribuna, o veterinário e doutor pelo Departamento de Clínica Médica da USP explica os perigos e cuidados que envolvem o microrganismo

Por: Eduardo Brandão & Da Redação &  -  19/08/19  -  20:12
“Por ser considerado um problema relativamente novo, poucos veterinários conhecem o assunto”, afirma
“Por ser considerado um problema relativamente novo, poucos veterinários conhecem o assunto”, afirma   Foto: Irandy Ribas/ AT

De potenciais transmissores de doenças a alvo de infecções geradas pelo contato com pessoas, os pets já apresentam sinais de infecções por bactérias resistentes a antibióticos de uso restrito a humanos.


É o que confirmam pesquisas do veterinário santista Fábio Sellera. Doutor pelo Departamento de Clínica Médica da Universidade de São Paulo (USP), ele comprovou que superbactérias são transmitidas a cachorros e gatos, representando um novo desafio à Medicina Veterinária e uma potencial ameaça à saúde pública.  


O que são superbactérias e onde é que elas podem ser encontradas? 


Superbactéria é um termo popular para designar a bactéria multirresistente a vários antibióticos. Elas têm sido identificadas, principalmente, em ambientes hospitalares, limitando as opções de tratamento. Entretanto, mais recentemente, também começaram a ser isoladas de animais e do meio ambiente. 


Quais são as origens dessas superbactérias?  


A resistência bacteriana é um fenômeno natural evolutivo. Um mecanismo de defesa que as bactérias possuem para garantir sua sobrevivência. Versões resistentes já foram isoladas, inclusive de múmias antigas (época que precede os antibióticos), o que sugere que esse fenômeno sempre esteve presente. O grande problema da atualidade é que o uso inadequado dos antibióticos está selecionando as bactérias mais resistentes, e consequentemente, as infecções não respondem aos tratamentos.  


E quais os riscos à saúde humana?  


As superbactérias nem sempre vão causar doença. Porém, quando causam, é sempre de modo preocupante, pois existem poucas opções de tratamento. Isso se deve ao fato de a indústria farmacêutica ter uma grande dificuldade para desenvolver novos antibióticos e, infelizmente, toda vez em que um novo antibiótico é introduzido no mercado, poucos anos após já é possível observar bactérias resistentes a esse medicamento. 


Sempre foi assim? 


Isso vem sendo observado desde a introdução do primeiro antibiótico usado para tratar infecções, a penicilina, na década de 1940. É importante lembrar que, no passado, a penicilina salvou milhões de vidas e transformou infecções potencialmente mortais em doenças não tão graves assim, mas, hoje, dificilmente funcionará para tratar infecções mais graves. O mais preocupante são as estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), que sugerem que, se medidas não forem tomadas urgentemente, mais de 10 milhões de pessoas morrerão por ano, em 2050, devido a problemas relacionados às bactérias resistentes. Para se ter uma ideia, esse número seria superior ao de mortes causadas pelo câncer.  


Em suas pesquisas, foi descoberto que os humanos estariam passando esse problema aos animais. Como? 


Os animais são potenciais transmissores de bactérias e de outros micro-organismos aos seres humanos. Entretanto, observamos que, em alguns casos, cães e gatos apresentavam infecções por bactérias resistentes a antibióticos de uso restrito humano, como carbapenêmicos e vancomicina. Esses antibióticos são recursos de última escolha, geralmente reservados para tratar infecções em pacientes humanos que não respondem a quase mais nenhum antibiótico. 


Mas como essas bactérias estariam agindo em cães e em gatos?  


A resposta pode estar no contato próximo entre humanos e pets. Essas bactérias são capazes de infectar e colonizar tanto humanos quanto animais. Portanto, a transmissão bidirecional entre humanos e animais vem ocorrendo. Análises dos genes determinaram a linhagem da bactéria e, por muitas vezes, temos encontrado as mesmas circulando entre humanos e pets, inclusive as linhagens consideradas de alto risco por serem estritamente associadas a infecções graves ou se mostrarem letais para os humanos.  


Quais os riscos do contágio animal por humanos? 


O principal risco é o aparecimento de infecções que não têm tratamento, levando animais a óbito. O fato é particularmente mais grave, porque isso está passando despercebido, visto que na Medicina Veterinária há poucos profissionais especializados nesse seguimento e eles acabam atuando muito mais na área acadêmica do que na clínica. 


Existe tratamento? 


Em muitos casos, ainda é possível tratar os animais, mas, por ser considerado um problema relativamente novo, são poucos os médicos-veterinários que conhecem o assunto. Portanto, a estratégia de tratamento pode ser discutida entre o veterinário e o laboratório que realizou os testes, justamente para que auxilie na escolha do antibiótico mais apropriado.  


É possível que essa superbactéria em animais evolua a ponto de ser mais agressiva aos humanos? 


Atualmente, a disseminação de superbactérias vem sendo discutida em um conceito amplo de saúde pública, que contempla a interação entre humanos, animais e o meio ambiente. Sob a perspectiva de resistência bacteriana, já é praticamente impossível separar a saúde humana do animal. Basicamente, está tudo interligado. Os animais podem transmitir para os humanos, tal como os humanos podem transmitir aos animais. É fundamental que os profissionais da saúde reconheçam o problema e, principalmente, atuem de forma conjunta.  


Há grupos mais expostos às superbactérias?  


Sim, pacientes (humanos e animais) hospitalizados por longos períodos e profissionais da área da saúde que atuam nesses ambientes. 


Como é a transmissão?  


O nosso corpo é repleto de bactérias, sendo que a maior parte é benéfica e faz parte de nossa microbiota. As superbactérias podem aparecer após tratamentos prolongados ou inadequados com antibióticos. Por isso, é fundamental seguir à risca as recomendações dos médicos e dos veterinários. Outras formas de aquisição dessas bactérias incluem ingestão de água ou alimentos contaminados e contato com outros portadores (humanos ou animais que já as carregam). 


O que elas costumam provocar no organismo? 


As superbactérias podem causar infecções sistêmicas e levar à morte o paciente, após não haver uma resposta para os tratamentos adotados. 


Há riscos de contágio por consumir produtos com superbactérias? 


Sim, muitos. Nos casos em que há consumo de produtos contaminados, podem ocorrer duas situações. A primeira seria relacionada a quadros de infecção gastrointestinal, que eventualmente necessitariam de tratamento com antibióticos, mas teriam sua eficácia comprometido devido à resistência da bactéria. A segunda se refere à colonização, sem obrigatoriamente apresentar infecção. Ou seja, as bactérias multirresistentes podem ficar habitando o nosso corpo e, em momentos de imunidade baixa, se aproveitarem e causarem uma infecção. 


Estudos detectaram superbactérias em carne de frango industrializada. Como isso ocorre?  


Muitos estudos vêm detectando a presença de superbactérias em produtos de origem animal, por exemplo, carne de frango. Nesses casos, o principal fator desencadeador do problema é a administração de antibióticos em larga escala para manter a saúde dos animais na criação. Como eles ficam juntos, os antibióticos são usados de modo preventivo para evitar potenciais doenças que podem acometer toda a criação. Alguns antibióticos podem auxiliar no ganho de peso. Entretanto, vale ressaltar que existe uma forte pressão de órgãos nacionais e internacionais para que essas medidas sejam reavaliadas.  


Os hospitais estão preparados para combater esses casos?  


Os hospitais contam com especialistas em Infectologia que atuam nessa área. São profissionais treinados e preparados, que podem ser considerados a linha de frente para lidar com o problema em ambiente hospitalar. Além disso, muitos hospitais têm comissões de controle de infecção hospitalar que atuam em diagnóstico, prevenção, tratamento e vigilância epidemiológica das infecções hospitalares. 


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