'Não é porque você bebe e não sente nada que está tudo bem. Hepatite C mata', explica médico

Márcio Dias de Almeida é hepatologista do Hospital Albert Einstein; segundo o Ministério da Saúde, há 1,7 milhão de pessoas com hepatite C e 756 mil com hepatite no Brasil

Por: Sheila Almeida & Da Redação &  -  30/07/19  -  00:44
'A gente ainda perde muito paciente sem nem saber que ele tinha problema no fígado', diz Almeida
'A gente ainda perde muito paciente sem nem saber que ele tinha problema no fígado', diz Almeida   Foto: Vanessa Rodrigues/AT

O fígado geralmente só é lembrado depois que alguém extrapola no consumo de bebidas alcoólicas ou comida. Mas, apesar de nem todos se importarem com ele, trata-se do segundo órgão que mais exige transplantes no Brasil, depois dos rins. Para conseguir um fígado, é preciso entrar numa espera difícil. No Brasil, em dezembro de 2018 eram 5.192 pessoas no aguardo e capacidade para 2.200 transplantes. Só 42% dessas pessoas tinham condições de atendimento.


Apesar de excluído dos check-ups, o fígado é lembrado na campanha Julho Amarelo, contra as hepatites, em respeito à Lei Federal 13.802/19. Segundo o Ministério da Saúde, há 1,7 milhão de pessoas com hepatite C e 756 mil com hepatite B no Brasil – no caso da B, os médicos consideram isso um absurdo, já que há vacina gratuita.


Para falar sobre esse cenário, o médico hepatologista Márcio Dias de Almeida, coordenador da equipe de transplante de fígado do Hospital Albert Einstein, da Capital, participou na última semana da Jornada de Hepatites Virais, promovida pela Coordenadoria de Controles de Doenças Infectocontagiosas de Santos. Falou da importância de todos conhecerem melhor o órgão, que, sem sintoma aparente, pode provocar a morte.


As pessoas costumam procurar o médico para checar a saúde do fígado?


Não. O fígado só é lembrado em algumas circunstâncias, de uma forma até deturpada. Ele nem é o responsável pela pessoa vomitar, ter dor de cabeça ou passar mal após abusar de álcool ou comida. Na verdade, o fígado peca pela falta de sintomas quando está doente. Costuma-se detectar que o paciente tem um problema 15 ou 20 anos após adquirir hepatite C. E a doença, que na imensa maioria das vezes é assintomática, mata.


O que faz mal ao fígado?


O álcool ainda é um problema. A cultura faz com que muitos jovens, ainda na primeira e antes da segunda década de vida, comecem a beber. Na lista de transplante de fígado, o álcool é a segunda maior causa de indicação de transplante. Está empatado com a gordura no fígado. A gordura, que causa esteatose, será a principal causa de transplante nos Estados Unidos em 2020. No Brasil, estima-se que isso aconteça em três ou quatro anos. 


Então, o maior problema do álcool para o fígado é a cirrose?


A cirrose representa o endurecimento do fígado. São várias as causas. A mais comum é a hepatite C. Mas o álcool tem bastante importância na cirrose. Essa doença predispõe outras complicações também silenciosas. Por exemplo: o indivíduo precisa ter cirrose para manifestar o câncer. Mesmo assim, é preciso lembrar que a gordura no fígado, também antes da evolução para a cirrose, pode favorecer o câncer.


No caso da esteatose, o ganho de peso é o único causador do problema?


O fígado cria gordura e engorda como nossos braços, rosto e corpo em geral, mas há casos em que não é isso que causa esteatose. O aspecto genético gera situações mais difíceis de tratar. Hoje, a gente não tem um medicamento específico. Só tratamos problemas de base, como aumento de colesterol, triglicérides, sedentarismo, diabetes e obesidade. Mas já há várias combinações de drogas em estudo. Provavelmente em quatro ou seis anos, teremos as primeiras novidades.


A esteatose, portanto, é subdiagnosticada?


Não, mas como não apresenta sintoma, muitas vezes o problema é minimizado por ser comum, até mesmo pelos médicos. No Albert Einstein, 40% dos pacientes que vão fazer check-up têm gordura no fígado. Uma parte já está com inflamação – esses casos são os mais sérios. Há ações internacionais chamando a atenção disso, como o 2º Nash Day (Non-Alcoholic Steatohepatitis) deste ano, uma ação para a conscientização mundial.


A primeira causa de transplante de fígado é a hepatite C. O que fazer para se proteger das hepatites?


Tem que manter hábitos saudáveis e fazer o exame. O vírus só foi identificado em 1989 e começaram alguns testes a partir de 1991. Quem tomou transfusão de sangue naquela época fez uso de drogas com seringas fervidas, que não eram adequadamente esterilizadas, ou participou de uma antiga campanha de vacinação contra meningite, que era com um pequeno revólver, não sabia da doença. Tudo isso foi responsável por muita transmissão de hepatite. Hoje, a transmissão por sangue é incomum, mas pode ocorrer com equipamentos de manicure, por exemplo, tatuagens ou piercings e práticas sexuais de risco (sem uso de preservativo).


O que preocupa mesmo é a hepatite C? As outras não preocupam tanto?


A gente precisa repetir que doença de fígado é assintomática. Não é porque você bebe e não sente nada que está tudo bem. A hepatite C mata. Mas os outros tipos preocupam também. A hepatite B tem incidência menor. Nas crianças, ela é mais suscetível a evoluir para formas crônicas, por isso o cuidado faz parte do pré-natal. Contudo, a incidência é menor. A hepatite A, apesar de ser aguda e muitas vezes você não saber que foi contaminado, também preocupa. Há ocorrido alguns surtos. E existe uma variação chamada hepatite fulminante, relacionada ao tipo A, que teve casos com necessidade de transplante nos anos passado e retrasado. Mas para os tipos A e B existe vacina.


O número de transplantes e doenças hepáticas está crescendo?


Eu diria que está estável, mas a gente ainda perde muito paciente sem nem saber que ele tinha problema no fígado. Às vezes, há doador e, quando vamos abrir a barriga do falecido, o fígado estava doente e a pessoa nem sabia.


Há políticas públicas eficientes e suficientes para a conscientização?


A informação tem melhorado muito, mas ainda não é completa. Mesmo porque a gente vive num país de dimensões continentais, de difícil acesso e com uma diferença cultural e financeira muito grande. O sistema de erradicação de hepatite C é interessante. Na teoria, tem uma política desenhada. Mas, na prática, não possuímos medicamentos.


Na semana passada, A Tribuna noticiou a falta de 10% dos remédios de alto custo fornecidos pelos governos do Estado e Federal. 


Sim, isso ocorre frequentemente. Parece que tem remédio chegando nos próximos dias, para tratar de novos pacientes. Pois há quem já tenha se tratado e precisa recomeçar, pela falta de remédio. A partir do momento em que realmente os medicamentos estiverem à disposição, a política funcionará.


O que ocorre se o paciente com o fígado transplantado fica sem remédio?


Não pode ficar sem, senão o tratamento perde o efeito e a pessoa, a vida. Você tem um investimento caro para um transplante e perde a vida por causa de remédio.


Por que sempre atrasa?


Isso tem a ver com política de compra. Falei com o Ministério da Saúde, com a parte responsável pelos transplantes – e não pela compra. Ouvi do Sistema Nacional de Transplantes que mudou a política nas últimas gestões ministeriais. O pregão para a compra era realizado anualmente e passou a ser trimestral. Contudo, o Ministério da Saúde não tinha perna para fazer toda hora. Melhorou, talvez, a negociação, mas não se pensou na logística. 


Como está a fila para conseguir um transplante hoje em dia?


No Estado de São Paulo, nós temos hoje cerca de 400 pacientes na lista de espera para transplante. Não dá para estimar o tempo, porque é por gravidade. O paciente pode entrar e ser transplantado no dia seguinte, se o caso dele é muito grave. Depende da disponibilidade. Porém, para algumas situações que chamamos de especiais, a média de espera é de seis meses a um ano, porque infelizmente a gente não tem como suprir essa necessidade.


A indicação é que toda pessoa faça exame de hepatite?


Hoje, o acesso à saúde é muito mais fácil. Quem tem algum fator de risco, como dislipidemia (altos níveis de colesterol, triglicérides), diabetes, obesidade e sedentarismo, deve fazer exame básico de enzimas do fígado, que é um exame de sangue, além do ultrassom.


Querer doar órgãos ajuda a diminuir as filas para quem precisa de transplante?


Sim, mas tem que deixar claro para a família. Se a família recusa, não tem o que fazer, pois não existe doação presumida. Desde que essa informação saiu do RG, também houve queda grande de doações.


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