'José Bonifácio foi personagem fundamental na história brasileira', diz Miriam Dolhnikoff

Em entrevista para A Tribuna, professora doutora comenta sobre a importância do santista para o Brasil

Por: Eduardo Brandão & Da Redação &  -  17/06/19  -  20:29
'Como membro da elite da virada do século 18, ele tinha profunda desconfiança do povo', diz Miriam
'Como membro da elite da virada do século 18, ele tinha profunda desconfiança do povo', diz Miriam   Foto: Alexsander Ferraz/ AT

Homem de ideias à frente de seu tempo, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) entrou para a história como o Patriarca da Independência. Apenas três anos após o seu regresso da Europa – onde ficou por quase 30 anos (este fato faz exatos dois séculos) –, o ilustre santista foi protagonista dos desdobramentos que levaram à ruptura com a Coroa Portuguesa.


No entanto, ele não conseguiu concretizar as suas propostas. Defensor de mudanças profundas, como o fim da escravidão, foi derrotado pela elite econômica e política da época, que resistia a estas reformas. A análise é da professora doutora Miriam Dolhnikoff, docente da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.


Qual é a importância de José Bonifácio para a história brasileira?


Ele foi personagem fundamental na história nacional nas primeiras décadas do século 19. É conhecida sua participação nos eventos relacionados à Independência. Teve papel importante no processo que resultou na unidade da América portuguesa em um só país, após a ruptura com a metrópole. Mas talvez a maior importância de Bonifácio seja sua participação no debate político sobre o perfil da nova nação a ser organizada, uma vez proclamada a Independência. As suas propostas reformistas, embora sem apoio da maioria da elite política, pautaram o debate.


Pode-se concluir que sem Bonifácio o Brasil Colônia duraria mais tempo?


A questão inicial que coloco na biografia que escrevi sobre ele é justamente como medir o peso de um homem nos acontecimentos. Até que ponto um homem pode moldar a história? Essa pergunta é duplamente interessante em relação a Bonifácio. Primeiro porque ele atuou em um momento no qual parecia que todas as alternativas eram possíveis, o momento da Independência, quando se coloca pela frente a tarefa de construir uma nova nação. Segundo porque Bonifácio acreditava que, como um homem portador do conhecimento e da razão, ele poderia moldar a nova nação. A história mostra que o peso de um homem na condução dos acontecimentos é sempre relativo. Bonifácio foi importante articulador da Independência, mas o foi porque atuou em conjunto com outros membros da elite. O que é possível afirmar é que ele não agiu sozinho e, portanto, outra pessoa poderia ter assumido a liderança que ele exerceu.


Bonifácio estava em Paris na fase inicial da Revolução Francesa. Isso contribuiu para a sua visão da Independência do Brasil?


Creio que o principal impacto da Revolução Francesa em Bonifácio foi reforçar seu repúdio a revoluções e revoltas, como forma de obter as mudanças desejadas. Como um membro da elite da virada do século 18 para o 19, Bonifácio tinha profunda desconfiança do povo, das chamadas “classes subalternas”. Por isso, tinha horror de revoluções – para ele, sinônimo do caos, da barbárie. Na visão dele, somente os membros da elite tinham capacidade para saber o que era melhor para o país e para promover transformações, que deveriam vir de cima para baixo. Por isso, a Independência, para ele tinha que ser resultado de um acordo no interior da elite e, no caso do Brasil, esse acordo passava por D. Pedro. Só assim a Independência seria feita “dentro da ordem”, como ele defendia.


De um dos líderes da Independência à oposição a D. Pedro I e, consequentemente, ao exílio na França. O que provocou essa ruptura como imperador?


Creio que o principal motivo foi a acirrada oposição que Bonifácio sofreu como ministro dos Negócios Estrangeiros de D. Pedro I. A maior parte da elite não aceitava seu projeto de reformas estruturais, entre elas o fim da escravidão, inadmissível para uma elite que tinha na exploração do trabalho escravo sua principal fonte de renda e também sua própria identidade. Além de se opor às reformas por ele defendidas, opunha-se também ao seu empenho em organizar uma monarquia centralizada, com um Executivo forte. D. Pedro cedeu à oposição demitindo seu ministro. O imperador não conseguiria governar sem apoio da maioria da elite e por isso cedeu.


Por que a senhora chama José Bonifácio de Patriarca vencido?


Ao mesmo tempo em que ficou conhecido como Patriarca da Independência, Bonifácio foi derrotado naquilo que para ele era fundamental: a adoção de um projeto reformista para a nova nação. Defendia o fim da escravidão, a promoção da mestiçagem, um projeto civilizador, a integração de ex-escravos e indígenas na sociedade brasileira, como efetivos cidadãos. Essas propostas foram derrotadas em nome da preservação de uma sociedade escravista, profundamente excludente. Por isso, considero que, ao final, ele foi vencido. A maior parte da elite não aceitava as reformas por ele propostas. Bonifácio não confiava no povo e não confiava na elite, acreditava ser capaz de, sozinho, a partir do controle do governo, implementar seu projeto de reformas. Acabou isolado e, por isso, derrotado.


Qual o papel dele no desenvolvimento da nova nação?


Bonifácio teve papel importante no início do processo. Contribuiu para garantir que, depois da Independência, a América portuguesa não se fragmentasse em diversos países e se tornasse uma única nação. Contribuiu para a organização da monarquia constitucional. Suas ideias, embora derrotadas, permaneceram norteando o debate político. Tornaram-se referência para gerações futuras que também desejavam reformas.


Que propostas de nova nação não foram concretizadas? E por quê?


Foram aquelas que, para ele, seriam fundamentais para viabilizar uma nação, segundo seus parâmetros de civilização. A coesão do tecido social, a manutenção da ordem, o desenvolvimento econômico e a adoção de padrões de comportamento civilizado só seriam possíveis com uma população homogênea, com acesso à educação, à cidadania e a meios de sobrevivência. Para tanto, seria necessário acabar com a escravidão, promover a mestiçagem, tomar medidas para integrar ex escravos e indígenas, implementar um projeto civilizador. Nada disso foi concretizado. Mas nem por isso a nação se tornou inviável. A elite escravista mostrou ser possível construir uma nova nação com base na escravidão. Obviamente, não era a nação desejada por Bonifácio, mas, por outro lado, ele errou no seu diagnóstico de que sem as reformas a nova nação seria inviável.


Um aspecto menos explorado da biografia de José Bonifácio é a sua paixão por ciência e conhecimento. Quais as maiores contribuições dele nesse campo?


Bonifácio foi, antes de tudo, um cientista. Ingressou na política já com idade avançada para a época. Ele se formou em Direito e em Filosofia (que na época incluía Ciências Naturais) em Coimbra (Portugal). Especializou-se em Mineralogia. Esse era um campo científico muito valorizado na época, pois o estudo dos minerais e sobre as formas de sua extração era fundamental para o desenvolvimento da indústria. Bonifácio viajou por dez anos pela Europa, depois de se formar, para estudar Mineralogia nas melhores escolas. Escreveu artigos que foram publicados em importantes revistas científicas. Foi como cientista que ele se integrou à burocracia português a quando voltou para Lisboa. Foi responsável por desenvolver métodos modernos de extração e fundição do ferro e, por fim, encarregado de fundar e dirigir uma escola de Mineralogia no reino. Foi como cientista da ilustração que ele pensou a nação. Acreditava que o conhecimento e a razão norteariam todos os acontecimentos.


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