Muito se engana quem pensa que o acidente radioativo de Chernobyl é um caso superado e sem mazelas, e que a cidade ucraniana serve hoje só como ponto turístico para curiosos e youtubers de plantão. Ainda nos dias atuais, os efeitos da radiação são sentidos. E crianças que nasceram mais de vinte anos depois do maior acidente nuclear da história ainda sentem consequências bem reais.
Embora não existam números oficiais e os estudos continuem a ser desenvolvidos, há quem acredite que os gases liberados durante a explosão ainda afetará cerca de onze gerações seguintes.
Foi pensando nessas crianças que surgiu na Espanha e, depois, foi trazido para Portugal o projeto Verão Azul, da Liberty Seguros, que todo ano acolhe e traz para a nação lusitana jovens entre os seis e o dezesseis anos que vivem nas proximidades de Chernobyl, de maneira a interromper o ciclo de radioatividade a que estão sujeitos diariamente.
A iniciativa, que chega a sua 11ª edição, trouxe em 2009 treze crianças. Em 2019, foram 29. No total, mais de cem jovens já passaram pelo país e regressaram um pouco mais saudáveis, uma vez que, segundo algumas estimativas, passar um mês longe das zonas afetadas, com acesso ao sol e alimentação adequada, pode valer de um a três anos a mais de vida para crianças que convivem com altos níveis de radiação.
Bogdan Shpak, que vive em Zorin, uma aldeia ucraniana dos bosques de Ivankiv, a cidade habitada mais próxima da Central Nuclear de Chernobyl, é uma dessas crianças atendidas pelo programa. Prestes a fazer 13 anos, é o quinto ano consecutivo que ele vem a Portugal. Não tem nenhuma doença física e conta com um desenvolvimento intelectual dentro da média, mas quando chegou ao país, o pequeno Bogdan não sabia o que era um iogurte ou um kiwi, não sabia comer com dois talheres, tinha medo do chuveiro e nunca tinha escovado os dentes.
“Quando lhe foi dada uma escova dental, ele a utilizou para escovar o cabelo”, lembra Anabela Pereira, responsável pela família que acolhe a criança. “Bogdan aprende rápido e quer saber sempre mais. Hoje fala bem português, mas quando chegou aqui não falava nenhuma palavra. Ensinei-o a comer de faca e garfo, a tomar banho de banheira e a escovar os dentes. Se me vê com uma sacola, vem logo ajudar, segura na porta para passarmos e não há uma refeição que não termine com um ‘obrigado’. É uma criança muito educada”.
Katerina, outra criança atendida pelo programa, tem nove anos e vive com a mãe e mais cinco irmãos em Kiev, na Ucrânia. Em Portugal, veio pela primeira vez acompanhada da irmã, que tem a mesma idade, para passar as férias na casa de Lucília e Manuel, que vivem em Ericeira.
Lucília, de 58 anos, lembra emocionada do dia em que as crianças chegaram a sua casa. “A primeira coisa que ela fez foi ligar à mãe para dizer que na casa tinha muita luz e a cama era muito grande. Elas não sabiam ver as horas ou o que eram guardanapos. No início não gostavam de beijinhos e nem de contato físico. Mas agora já me apertam tanto que até machucam”, conta, orgulhosa.
A mãe portuguesa lembra um pormenor: “no primeiro dia, comeram mais de vinte iogurtes. Nunca tinham comido um. Também adoram tudo o que é fruta, comem pelo menos quatro bananas a seguir as refeições”.
No inicio, as famílias de acolhimento eram apenas as dos funcionários da empresa responsável pelo projeto. Com o passar dos anos e a divulgação do projeto, qualquer residente em solo luso pode se candidatar para receber uma ou mais crianças de Chernobyl. A empresa arca com as passagens e a família acolhedora, com os custos de alimentação e moradia.
Fernando Pinho, um dos dinamizadores do projeto, explica que, em Portugal, a matriz diz quantas famílias de acolhimento estão disponíveis e um organismo do governo ucraniano fica responsável pela triagem dessas crianças, que ainda não tem doenças, mas cujo os pais já desenvolvem doenças e problemas de saúde decorrentes da radiação.
Sobre o autor
Luiz Plácido é jornalista, apresentador do programa Destino Portugal (transmitido no canal de tv a cabo Travel Box Brazil) e proprietário da agência de turismo Destino Portugal Viagens. Ele escreve na coluna Conexão quinzenalmente, às quintas-feiras.