Conexão França: Notre-Dame e os Miseráveis

Nesta edição da coluna, Diana Gonzalez fala sobre as doações milionárias destinadas à reconstrução da Catedral de Notre-Dame

Por: Diana Gonzales - De Paris  -  30/04/19  -  20:30
Conexão França: Notre-Dame e os Miseráveis
Conexão França: Notre-Dame e os Miseráveis   Foto: FABIEN BARRAU / AFP

“Victor Hugo agradece a todos os generosos doadores que se prontificaram a salvar Notre-Dame de Paris, e propõe que eles façam o mesmo com Os Miseráveis”. A frase irônica que faz referência aos títulos de dois clássicos literários do escritor francês circulou nas redes sociais após a divulgação de doações milionárias destinadas à reconstrução da Catedral de Notre-Dame. 


Somadas, apenas as doações das três famílias mais ricas da França, feitas por meio dos grupos empresariais que elas administram respectivamente, chegam a € 500 milhões.


O anúncio de doações milionárias feitas no dia seguinte às chamas fez com que a comoção face às cinzas abrisse espaço para a polêmica em torno do montante e o real interesse dos doadores. Os altos valores desbloqueados tão rapidamente contrastam com o atual cenário de uma França em tensão.


Os Miseráveis, obra emblemática de Victor Hugo, lançada em 1862, retrata a pobreza de Paris e da província francesa no século 19. Já os “miseráveis” de 2019 não estão descritos numa obra de literatura, mas continuam ocupando as ruas de Paris e, desta vez, estampando as capas de jornais vestidos com seus coletes amarelos. Em suas manifestações, que já foram alvo de violências tanto do lado dos manifestantes quanto do lado das forças de ordem, os Gilets Jaunes pedem melhorias sociais e justiças fiscais.


E falando em fiscalidade, está justamente aí o fator que fez com que muita gente questionasse a boa fé das doações dos grandes grupos: na França, existe uma lei em que a empresa que faz doações que fomentam a cultura, entre elas o resgate do patrimônio, tem 60% desse valor deduzido de seus impostos.


Sendo assim, as doações milionárias das grandes marcas provocaram a desconfiança e constrangimento de muitos franceses. Muita gente denunciou essas doações, acusando estas empresas de fazerem uma grande operação de comunicação em benefício próprio.


Face às acusações, alguns dos grandes grupos anunciaram que não vão se beneficiar da redução de impostos permitida por lei. Já outros não se manifestaram sobre o tema.


Com a redução de impostos sendo aproveitada ou não, a crítica de muitos franceses paira sobre o fato de tanto dinheiro ter surgido tão rapidamente “em apenas alguns cliques” para a reconstrução da Catedral, enquanto não se vê esta mobilização para outras causas. Muitos apontaram este ato de generosidade seletiva. 


Em menor número vieram aqueles em defesa das doações, dizendo que os grandes grupos empresariais geram empregos e que a França não teria nada a ganhar caso eles não quisessem ajudar. 


As doações milionárias também surgem num contexto em que as entidades caritativas do país tiveram, pela primeira vez em dez anos, uma baixa de 4% de doações.


Uma das mais importantes entidades caritativas da França, a Fundação Abbé Pierre, manifestou seu descontentamento com as doações milionárias feita pelos grandes grupos por meio de um twitte: “Muito obrigado pela generosidade: nós somos muito ligados ao local onde ocorreu o funeral de Abbé Pierre. Mas nós somos igualmente muito ligados a seu combate. Se vocês puderem doar 1% para os desfavorecidos, nós ficaríamos muito felizes”.


Fato é que ninguém é contra as doações, mas o que choca é tanto dinheiro ter sido desbloqueado tão rapidamente, enquanto a população assiste o avanço do crescimento da pobreza.


Victor Hugo é responsável pela tomada de consciência face à necessidade da conservação e da valorização do patrimônio que é a Catedral de Notre-Dame. No último dia 15, a Notre-Dame quase morreu. Victor Hugo é conhecido por lutar pela preservação de monumentos, sobretudo os medievais. Porém, ele é igualmente o criador de Quasímodo e Esmeralda, dois párias da sociedade. E como ele próprio disse em Os Miseráveis: “Morrer é quase nada. Horrível é não viver”.


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